Cem dias de solidão
A gestão de expectativas é uma das artes
da política. A outra é a criação e a destruição de mitos. António Costa
não está a fazer nenhuma bem. Pedro Passos Coelho, fazendo tantas coisas
mal, faz aquelas bem. Recapitulando: o líder do PS surgiu em alta no
partido e no país. Criou a ideia de mudança, do novo, da esperança numa
sociedade atrofiada pela austeridade. Empurrou borda fora um líder morno
por este não corresponder nas sondagens, por ter ideias vagas. E foi
tudo.
Nestes cem dias que leva à frente do Partido Socialista,
furtou-se a lançar projetos para o país. Se o fez - e terá feito, aqui e
ali -, ninguém se lembra. E dessa fama já não se livra. Ninguém espera
que o líder da Oposição apresente o Orçamento para 2016. Mas espera-se
que traga ideias concretas, ou, pelo menos, a capacidade de pôr o país a
sonhar.
Sucedeu o contrário: manteve-se à frente da Câmara de
Lisboa, que lhe consome tempo e desgasta as ideias. Avançou com taxas
sobre o turismo, mal explicadas, e prosseguiu com mais taxas para
veículos antigos. Também quis perdoar taxas, mas ao futebol. E, sim,
disse perante a comunidade chinesa que o país estava diferente, naquela
diferença de estar melhor graças a eles. Ou quereria dizer que estava
diferente, mas pior graças aos chineses?
Pedro Passos Coelho, sabemo-lo cada vez
mais, fez muito mal. Foi mais longe do que a troika. O desemprego
galgou, a pobreza aumentou, a educação está pior, a saúde passou o
risco, as pensões baixaram e os impostos aumentaram. De reformas sérias e
fundas, nem um ai.
Mas Passos Coelho gere bem as expectativas.
Primeiro, baixou-as: fez-se o que se tinha que fazer, tirar o país da
bancarrota. E alimenta o mito. Foi fundo no nosso ADN judaico-cristão:
vivemos acima das possibilidades e quem vive acima das possibilidades
tem que ser castigado. Correndo tudo mal, na submissão à Alemanha sobre a
Grécia, nos relatórios europeus sobre a situação do país, nas
declarações abundantes e contraditórias dentro do Governo, correu-lhe
tudo bem graças à oposição que tem.
Agora vem com a esperança,
outra vez a tocar no ADN coletivo: quem penou, tem direito à recompensa.
A respirar de alívio. É a redenção. Começámos a pagar a dívida, o
consumo aumentou. E vem aí dinheiro. Do Portugal 2020 não chegará muito a
tempo, mas há todo o do encerramento do QREN, que é imenso. É por isso
que ele próprio sonha. Já não quer que se lixem as eleições. Vai
bater-se por uma maioria absoluta.
O que parecia impossível passou a expectativa viável. E agora, António Costa?
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
01/03/15
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