Doutores em delinquência
O centro de investigação de Boaventura de Sousa Santos e de José
Manuel Pureza serve-se da ciência e utiliza o erário público para
legitimar, sofisticar e exportar a violência social e política.
Imagine-se um centro de investigação universitário de um país árabe
simpaticamente financiado porque as entidades de supervisão e avaliação
académicas o consideram de excelência. O centro reunia uma equipa de
investigadores que, após aturado trabalho de campo em dois países da
Europa Ocidental com segmentos da população definidos como
marginalizados, concluía que os comportamentos criminosos desses
indivíduos eram fundamentais para a transformação das realidades
estudadas em prol da justiça social. Nessas e noutras sociedades da
Europa Ocidental.
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Os investimentos do estado árabe eram ainda recompensados pela
publicação em livro dos resultados da investigação, conhecimento
científico que passaria a ser partilhado pelas três sociedades
envolvidas, árabe e europeias, e outras mais.
Esse não é um mundo meramente ficcional graças ao controlo, ao longo
de décadas, de certos meios universitários pelas extremas-esquerdas. Não
é necessário procurar longe.
O estado português, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT), financiou uma investigação sobre a delinquência juvenil nas
cidades da Praia, em Cabo Verde, e de Bissau, na Guiné-Bissau. Dois
estados soberanos. O trabalho foi da responsabilidade científica do
Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, dirigido por
Boaventura de Sousa Santos. Contou com a participação dos
investigadores José Manuel Pureza, Sílvia Roque, Kátia Cardoso, Redy
Wilson Lima, Lorenzo I. Bordonaro, Marta Peça, Ulrich Schiefer e Joana
Vasconcelos. Os resultados foram publicados, em 2012, no livro “Jovens e
trajetórias de violências: os casos de Bissau e Praia” cujo conteúdo
equivale ao retratado nos dois primeiros parágrafos.
Uma vez que a investigação do CES atenta, no essencial, contra as
mais elementares regras de construção do saber sobre as sociedades e
contra os deveres cívicos, sociais, morais e de relações entre povos
exigíveis às universidades publiquei uma análise crítica sobre o assunto
vai para dois anos. A resposta tem sido o silêncio. No intervalo nunca
faltaram protestos, em Portugal, contra os cortes ao financiamento à
investigação universitária, protestos em muito alimentados pelos que
passam ao largo dos reparos à mediocridade do que produzem.
Este tipo de relação com a crítica constitui um dos enigmas do
enfeudado meio universitário “progressista”. Ou ignora ou, quando não
pode, o sistema faz cair a crítica no esquecimento para seguir em frente
inabalável, impante de convicções.
Há pouco mais de uma década foi elucidativo o episódio originado
pelas apreciações fundadas do cientista António Manuel Baptista,
publicadas em 2002 e 2004, contra a obra de Boaventura de Sousa Santos
intitulada “Um discurso sobre as ciências”, originalmente publicada em
1987. De então para cá a última teve mais de uma dezena de reedições que
serviram gerações e gerações de estudantes universitários formatadas
pelo “obscurantismo e irresponsabilidade”, o subtítulo do primeiro dos
textos de António Manuel Baptista.
O facto é que as críticas elaboradas por um académico ao qual não se
conhece falta de rigor científico, mas estranho ao meio “progressista”,
foram rapidamente votadas ao esquecimento. O livro visado seguiu de
vento em popa nos meios universitários por mais de uma década com
direito a mais umas quantas reedições apoiadas por milhões de euros de
financiamentos públicos a investigações científicas por ele inspiradas.
Uma das quais publicada em livro em 2012, tema deste texto.
No decurso da última década, os universitários que vão contactando
com o génio de Boaventura de Sousa Santos não foram por norma
incentivados a confrontar o texto original que projetou o seu mestre com
a crítica dirigida ao mesmo por António Manuel Baptista para pensarem
por eles mesmos. Um ambiente universitário paroquial que protege vícios
intelectuais desta forma e natureza não é merecedor de grande respeito e
muito menos de financiamentos públicos. Mas também uma sociedade
indiferente a tais práticas está longe de ambicionar o melhor para si
mesma.
Fazer ou não críticas a certos meios académicos, fundamentadas que
sejam, resultam em nada. Se os governos se contam entre as entidades
mais escrutinados nas nossas sociedades, e ainda assim podem ser
nocivos, tal escrutínio é muitas vezes histericamente agitado para
escamotear o papel bem mais nefasto de certos poderes instalados em
universidades, sindicatos ou comunicação social, posto que sobre os
últimos não incide um escrutínio social ou dos pares minimamente
razoável.
O estudo do CES, pelo que representa, é merecedor de publicidade para
que a mediocridade se anule a si mesma. De modo sistemático e
deliberado, os investigadores académicos colocaram o foco das suas
análises nos agressores criminais. Por aí não viriam males ao mundo se o
resultado não fosse a descoberta de fundamentos científicos que
permitem detetar em jovens delinquentes das cidades da Praia e de Bissau
uma miríade de afro-românticos Che Guevaras suburbanos, a fonte da
esperança da transformação futura para melhor daquelas sociedades. O
estudo não se coíbe de recorrer depreciativamente ao conceito adjetivado
de “paz liberal” (apenas “paz” não bastava), a paz social que
supostamente domina e perverte as sociedades da atualidade, garantida à
custa da opressão dos desfavorecidos e da força policial. Esta é a causa
da “violência estrutural”, outro conceito adjetivado definido em rodapé
na página 152 do livro.
De acordo com a visão científica em vigor no CES, esse tipo de paz
social deve ser substituído por um outro. Desta feita os novos amanhãs
que cantarão talvez espoletem em África e Coimbra será finalmente
libertada de opressões liberais, neoliberais e de uma polícia opressora
ao serviço dos ricos.
.
Nas diversas abordagens do estudo científico, as vítimas de crimes
cometidos nas cidades da Praia e de Bissau são praticamente suprimidas
enquanto objetos com interesse sociológico ou antropológico. É como se
as graves consequências quotidianas da criminalidade nas sociedades
africanas da atualidade fossem as mesmas que em Coimbra e arredores e
como se o crime não fosse, ele mesmo, causador de pobreza.
De resto, no último meio século muitas sociedades africanas foram
diligentes em gerar problemas mais do que suficientes para os próximos
cem anos. Da explosão demográfica à segurança urbana; do saneamento
urbano à distribuição da riqueza; da saúde à qualidade do ensino; da
feitiçaria ao civismo; do emprego ao trânsito; do terrorismo às
epidemias; do ambiente à simples estabilidade e previsibilidade da vida
de todos os dias. Entre outros. Não quer dizer que África seja só isso. O
que significa é que as indústrias ideológicas exportadoras das
esquerdas europeias que viveram tempos de hiperprodução no último meio
século – as principais correntes utópicas inspiradoras dos destinos
pós-coloniais do continente e com as universidades como unidades de
produção de excelência – bem que poderiam suspender a laboração por umas
décadas. O “stock” acumulado não se esgotaria e talvez se poupassem as
réstias de esperança que, apesar de tudo, os africanos sempre
reinventam.
Depois de um manancial de atropelos às mais elementares regras de
construção do saber sobre as sociedades, como o afastamento deliberado
do esforço de neutralidade axiológica (leia-se Max Weber ou Georg
Simmel) ou a denegação da orientação pela amoralidade ética (leia-se
Sigmund Freud), Sílvia Roque e Kátia Cardoso são cristalinas no par de
grandes conclusões da investigação científica em que participaram.
Primeira, a ciência social do CES torna evidente a necessidade de “(…)
enfrentar a progressiva e consequente deslegitimação e criminalização da
violência” (p.295), isto é, a violência social e política é legítima,
útil e desejável como atestam as evidências empíricas de Cabo Verde e da
Guiné-Bissau. Segunda, importa “(…) repensar o significado e as
possibilidades da resistência e recusar a estreiteza de definição do que
pode ser considerado político (…)” (p.296), isto é, os pensamentos e as
práticas políticas sem violência, mesmo nas democracias, não passam de
manifestações menores ou cínicas, nem que para contrariá-las seja
necessário glorificar a delinquência juvenil. Infere-se, portanto, que o
CES legitima cientificamente o terrorismo.
Note-se a particularidade destas teses científicas de orgia da
violência serem desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos para a Paz
do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A ficção
de Orwell foi suplantada em rigor pelos cientistas sociais.
O centro de investigação de Boaventura de Sousa Santos e de José
Manuel Pureza, e de outros, serve-se da ciência, transforma uma
universidade pública em barriga de aluguer e utiliza o erário público
destinado ao financiamento à investigação para legitimar, sofisticar e
exportar a violência social e política. Na impossibilidade de fazer
germinar tais barbaridades em Coimbra, empenha-se em exportá-las para
Cabo Verde e Guiné-Bissau, como se estas e outras sociedades africanas
necessitassem de mais convulsões e violências. Se esta atitude não
constitui uma afronta da Universidade de Coimbra à inteligência mais
comum e à vida quotidiana dos africanos, resta-me questionar a utilidade
das independências.
O CES existe para provar a existência de relações de parentesco entre
certas instituições universitárias e a instigação da violência social e
política e da delinquência.
É para isso que servem as universidades? A Universidade de Coimbra
não tem reitor? Serão legítimos e fiáveis os critérios que levam a FCT a
considerar o CES um seu laboratório associado, isto é, um dos raros
nichos de excelência científica em Portugal que lhe permite consumir
avultados milhões de euros ano após ano? É assim que o governo português
vem garantindo, promovendo e investindo na estabilidade da vida social,
na qualidade das suas instituições e na melhoria das relações com
outros estados soberanos? Os governos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau
não têm nada a ver com o assunto?
IN "OBSERVADOR"
20/01715
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