HOJE NO
"PÚBLICO"
Avaliação da FCT definia à partida que
metade dos centros de investigação
ficaria pelo caminho
metade dos centros de investigação
ficaria pelo caminho
Quase 40% dos laboratórios avaliados contestaram as suas classificações junto da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Metade ficou sem ou quase sem dinheiro para os próximos cinco anos. Esta sexta-feira também se soube o teor dos contratos com entidades estrangeiras responsáveis pelo processo.
A avaliação em curso pela FCT definia mesmo antes de arrancar que
cerca de metade dos 322 centros de investigação portugueses seria
afastada da fase seguinte do processo, onde vão estar em jogo a maior
parte dos 50 milhões de euros anuais que os laboratórios vão ter para
despesas correntes entre 2015 e 2020.
É o que está escrito no contrato
que a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) estabeleceu com a
European Science Foundation (ESF), à qual delegou a organização da
avaliação dos laboratórios, e que foi tornado público esta sexta-feira à
tarde pela fundação portuguesa que financia a ciência.
“Um montante fixo de 109.592 euros é acordado para a
segunda fase, com base nos seguintes pressupostos: número de unidades
de investigação seleccionadas para a fase 2: 163”, lê-se no acordo
assinado entre a FCT e a ESF no início de Abril deste ano. Mais à
frente, lê-se ainda: "A primeira fase da avaliação irá resultar numa
shortlist de metade das unidades de investigação que serão selecionadas
para seguir para a fase 2."
De facto, transitaram para a segunda
fase 168 unidades de investigação e ficaram de fora 154, que vão ficar à
míngua de dinheiro para despesas correntes nos próximos cinco anos.
Estes resultados desencadearam uma onda de protestos públicos e que
também se traduziu na contestação formal das classificações pelos
próprios centros de investigação junto da FCT: até 11 de Julho, quando
terminou o prazo legal para apresentar reclamações, 128 das 322 unidades
avaliadas tinham contestado os resultados. Ou seja, quase 40%.
Nas
últimas semanas, tinham-se multiplicado os pedidos de divulgação dos
acordos entre a FCT e a Elsevier – responsável pela recolha de dados
bibliométricos utilizada na avaliação –e a ESF, que coordenou o
processo. Depois de dias de resistência, a fundação que atribui fundos
públicos ao sistema científico acedeu finalmente. Os contratos que
mostram que a avaliação custa aos seus cofres portugueses quase 400 mil
euros. Segundo a FCT, a avaliação anterior, em 2007, que tinha envolvido
as 378 unidades de investigação existentes na altura, custou cerca de
1,6 milhões de euros.
A fatia mais pequena destes 400 mil euros destina-se à Elsevier (70 mil euros). Já a ESF vai
receber mais de 312 mil euros, aos quais acrescem ainda os custos das
viagens dos avaliadores a Portugal durante a segunda fase do processo,
que vai decorrer nos próximos tempos e que, de acordo com o contrato,
são assumidos directamente pela FCT.
A suspeita de que existia uma
quota pré-definida para os centros que passariam à segunda fase da
avaliação já corria entre a comunidade científica, depois de terem sido
divulgados os resultados na primeira do processo, no final de Junho.
Esta cláusula do contrato agora conhecida sugere que a FCT tinha
definido um limiar de centros de investigação cuja passagem à segunda
fase era, pelo menos, esperada.
Alguns avaliadores externos
anónimos tinham deixado transparecer nos seus relatórios de avaliação, e
que foram entregues aos centros, que receberam indicações para baixar
certas notas por causa da existência de quotas. Esta acusação foi
refutada pelo presidente da FCT, Miguel Seabra, na entrevista que deu ao
PÚBLICO na quarta-feira (publicada agora nestas páginas),
considerando-o “totalmente descabida”.
Esta sexta-feira, após a
divulgação dos contratos, o PÚBLICO questionou novamente a FCT sobre a
definição prévia de uma quota de sucesso. A fundação, através da sua
porta-voz Ana Godinho, justifica que aquele valor dos 163 centros era
apenas “uma estimativa” feita com base na avaliação de 2007: “[Nessa
altura] cerca de 50% das unidades teve Mau, Razoável ou Bom.”
Em
2007, as notas eram Mau (Insuficiente), Razoável, Bom, Muito Bom e
Excelente. Neste momento, a classificação passou a inclui como nível
superior, o Excepcional, pelo que o Bom implica agora quase não ter
direito a financiamento para despesas de base. Portanto, o Bom já não é
bom.
Voltando ao contrato, o mesmo estabelece também que ESF
recebe 202.602 euros pela primeira fase de avaliação, terminada no mês
passado. Aquela entidade também esteve debaixo de fogo, sendo criticada
pela sua falta de experiência neste tipo de avaliações.
Contactada pelo
PÚBLICO, fonte do organismo europeu respondeu a essa questão com o envio
de uma brochura sobre a sua actividade recente, onde informa que está
neste momento a avaliar o funcionamento da homóloga da FCT na Hungria,
depois de nos últimos anos ter feito o mesmo para organismos semelhantes
da Lituânia, Eslovénia e Bulgária.
Mas nas informações oficiais
enviadas, em nenhum momento consta a elaboração de um processo
semelhante ao português, com a avaliação de laboratórios de investigação
e do sistema científico nacional, com o intuito de estabelecer as bases
do financiamento estatal numa base plurianual.
Carlos Fiolhais,
um cientista bem conhecido, que tem sido um dos rostos principais
protestos da comunidade científica nos últimos tempos, no blogue de que é
um dos fundadores, o De Rerum Natura, comenta assim o número
pré-definido no contrato de unidades que passariam à segunda fase:
“Muito grave será se se confirmar que a FCT deu indicações aos painéis
de avaliação para eliminar 50% dos centros em todas as áreas. Por que
razão para lá dos 50% os centros passam subitamente a deixar de ter
qualidade necessária para serem financiados por dinheiros públicos?”
O
físico defende também que estes resultados “significam, de facto, a
morte de quase metade das unidades de investigação do país”. Fiolhais
refere-se às 71 unidades de investigação classificadas com Insuficiente
ou Razoável e que, por isso, não vão ter qualquer dinheiro para
funcionamento de base. E ainda às 83 unidades que tiveram Bom e que
também não passam à segunda.
“Isto significa encerrar centros de
investigação produtivos, apenas porque não cabem nas quotas
arbitrariamente definidas. Significa uma ciência mais pequena, mais
provinciana, com o poder mais concentrado, mais semelhante à ciência do
Estado Novo. A investigação em Portugal ficará restrita a um clube mais
reduzido”, critica.
Outro nome forte da ciência em Portugal,
Manuel Sobrinho Simões, presidente do Instituto de Patologia e
Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), também
criticou ao PÚBLICO a avaliação, ainda antes da divulgação dos
contratos. Entende que o processo está “minado” pela “desconfiança e
falta de transparência” e pela falta de confiança dos cientistas na
actual direcção da FCT”.
Para Sobrinho Simões, a avaliação teve “o
propósito de destruir o tecido institucional criado nos últimos 20
anos, na convicção de que do deserto brotarão génios”.
A ideia de excelência
Uma
opinião em contracorrente vem de António Coutinho, imunologista de
renome e ex-director do Instituto Gulbenkian de Ciência de Oeiras,
também falou com o PÚBLICO horas antes da divulgação dos contratos. “É a
primeira vez em Portugal que se faz uma avaliação totalmente isenta e
transparente: todas as unidades foram avaliadas no mesmo processo, sem
distinção”, sustentou.
Coutinho, que também é coordenador do
Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia – mas que falou a título
individual –, elogia ainda facto de a FCT não ter escolhido os
avaliadores e ter confiado o processo a uma “entidade externa
respeitável”. Na área que melhor conhece, a das ciências da vida e
saúde, garante não ter visto nenhuma avaliação mal feita. Mas os erros,
defende, são “naturais” num processo como este. “Por isso há os
recursos”.
A onda de contestação pública dos últimos dias preocupa
António Coutinho, que diz temer que a FCT “acabe por não levar a sério
esta avaliação”. Até porque, entende, o sistema científico português
precisa de alterações: “A mudança tem de ser feita com jeito, com
cuidado. Mas alguma coisa tem de ser feita”.
Mas até que ponto a
ciência do país já está pronta para apostar quase só na excelência? “A
excelência costuma gerar excelência”, responde António Coutinho. “Por
outro lado, a mediocridade gera sempre mediocridade. Nunca sai
excelência. Usar dinheiro público para apoiar a mediocridade é sempre
uma má política.”
Arsélio Pato de Carvalho, fundador no final dos
anos 1980 da instituição que hoje é o Centro de Neurociências e Biologia
Celular de Coimbra, actual Provedor do Bolseiro, discorda desta visão:
“O que se está atentar fazer é apoiar exclusivamente unidades de
excelência. Sempre fui pela excelência, mas não podemos ter só
excelência. “Imagine um cientista excelente, mas tudo à sua volta está
seco. Tem um oásis num deserto”, ilustra.
Universidades querem ser ouvidas
A contestação das últimas semanas saltou fronteiras e chegou à revista Nature, à agência de notícias de ciência europeia Alpha Galileo e à revsita Physics World,
publicação do Instituto de Física britânico. E teve também reflexos
políticos, com a Fenprof a exigir que o Governo recue no processo, o
partido Livre a defender que as unidades anteriormente classificadas com
Excelente ou Muito Bom “apenas possam ser excluídas da segunda fase do
processo de avaliação mediante a demonstração de falta grave”, e o PCP a
requerer uma audição parlamentar à secretária de Estado da Ciência,
Leonor Parreira.
A organização do sistema científico nacional está
intimamente ligada às instituições de ensino superior, às quais está
por sua vez ligadas a esmagadora maioria dos centros de investigação.
Ana Costa Freitas, reitora da Universidade de Évora, defende que a
avaliação da FCT devia ter tido o cuidado de perceber “o impacto que tem
na estratégia das instituições de ensino superior”. A universidade –
que viu mais de 40% dos seus laboratórios serem chumbados – perdeu
“centros fundamentais para o desenvolvimento da sua investigação”.
“Há
um divórcio profundo entre a FCT e as universidades”, concorda o
vice-reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão. Este responsável
considera que seria “inaceitável” se se concluísse que este processo
foi condicionado pelas disponibilidades de financiamento da FCT. “A
avaliação científica deve ser séria. Os que são excelentes não podem ser
carimbados com um rótulo de suficiente só porque não há dinheiro
suficiente para lhes dar”, aponta.
Esta semana, o Conselho
Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos também expressou a
sua “apreensão e grande preocupação” com este processo, que “coloca em
causa o futuro” dos centros de investigação. Nos próximos dias, o
Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas também deverá
pronunciar-se. A avaliação vai continuar a dar que falar e os olhares
irão certamente escrutinar o contrato agora divulgado.
* FCT, uma invenção maquiavélica, quem foi o crânio?
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