Palavras no vazio
Os discursos presidenciais de 10 de Junho parecem condenados a ser
meros exercícios de retórica no vazio de uma efeméride que merecia, sem
dúvida, outra celebração mais imaginativa, empenhada e mobilizadora.
Mas talvez nunca como este ano as palavras de Cavaco Silva
terão revelado uma distância tão grande – e patética – da realidade
política nacional.
De que serve apelar a um «entendimento partidário de médio prazo»,
sobre a sustentabilidade da dívida pública e as reformas para estimular a
competiti- vidade económica, quando as condições para esse entendimento
se mostram mais longínquas do que alguma vez estiveram?
Pode argumentar-se, claro, que Cavaco se limita a fazer o que lhe é
permitido, no quadro das suas atribuições, para lembrar aos partidos a
urgente necessidade de um compromisso político. Mas o que se torna
também cada dia mais evidente é que a leitura minimalista e
autodesculpabilizante dos seus poderes acaba por transformar o chefe do
Estado numa desoladora redundância institucional, retirando-lhe
progressivamente a confiança dos portugueses, como atestam as sondagens
mais recentes.
Além disso, o Presidente da República não pode nem deve ignorar as
circunstâncias concretas em que faz esse apelo – ou seja, que ele se
destina a cair em saco roto e em tornar ainda mais vagos, inúteis e
inconsequentes os poderes presidenciais. No limite, se o que parece é,
Cavaco estará sobretudo preocupado em sacudir a água do capote e guardar
para memória futura as propostas e avisos que foi deixando – a exemplo
de outros discursos passados – como se isso servisse para absolvê-lo da
sua impotência política.
Na Guarda, o Presidente afirmou: «O tempo de diálogo que se estende
agora até à discussão do próximo Orçamento do Estado será o mais
indicado para que as forças políticas caminhem no sentido da
concretização do direito à esperança dos portugueses, numa perspectiva
temporal mais ampla, situada além das vicissitudes partidárias ou
cálculos eleitorais. É essa a responsabilidade das forças partidárias».
Ora, tudo isto não passa de uma piedosa abstracção que faz tábua rasa
da crise política cada vez mais acentuada que, em várias frentes, se
vive no país. Cavaco finge que os resultados das últimas eleições
europeias podem ser rasurados do mapa – nomeadamente a pesada derrota da
coligação de direita e a escassa vitória do terceiro partido do chamado
arco da governabilidade, o PS, que, de resto, o precipitou numa grave
convulsão interna sem fim à vista.
Ora numa situação de efervescência e debilidade política dos
protagonistas partidários, com apelos recorrentes à antecipação das
legislativas, como esperar um «tempo de diálogo» que ninguém parece
interessado em promover ou aproveitar?
As «vicissitudes partidárias» e os «calendários eleitorais»
condicionam a paisagem política nacional e tornam absolutamente remota
ou mesmo inviável qualquer hipótese de diálogo e compromisso nos tempos
mais próximos (como o foi, aliás, em tempos passados). Não sendo o
Presidente o culpado directo por essa situação, o facto de limitar-se,
porém, ao estatuto de espectador passivo, que insiste em apostar num
cenário absolutamente irrealista, serviria apenas para alimentar falsas
expectativas (o tal «direito à esperança») junto dos portugueses – se
eles não estivessem já totalmente descrentes delas…
Perante o panorama que temos à nossa frente – agravado ainda pela
controvérsia em torno dos últimos acórdãos do Tribunal Constitucional e
das incertezas sobre os acórdãos que se seguem –, ao Presidente da
República restava um papel energicamente pró-activo, assumindo a
iniciativa política e não a deixando suspensa de um ambiente
político-partidário apodrecido, em tudo contrário à hipótese do
compromisso que Cavaco considera indispensável e apontando a uma
«perspectiva temporal mais ampla».
Se as forças partidárias tendem a acantonar-se no curto prazo e no
‘salve-se quem puder’, se o risco de bloqueio e paralisia espreita as
instituições, como garantir o «direito à esperança dos portugueses»? Não
será esse, precisamente, o papel do primeiro magistrado da Nação?
Cavaco Silva recusa-se a ver o que se passa à sua volta, julgando que
com isso preserva a sua coutada presidencial. Nada mais ilusório. Para
além da conjuntura política imediata, estão também em causa a natureza e
a substância dos compromissos que o Presidente desejaria ver
concretizados, mas sobre os quais evita pronunciar-se. Depois de oscilar
entre posições contraditórias, desde a denúncia da espiral recessiva
até ao acomodamento com as posições governamentais e os dogmas da
troika, Cavaco está prisioneiro no vazio do seu palácio e das suas
palavras.
IN "SOL"
15/06/14
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