27/06/2014

EVA GASPAR

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O lado H da 
concorrência fiscal

A Irlanda tem funcionado como uma espécie de máquina do tempo para Portugal. A origem da crise e a capacidade de gerar consensos políticos e sociais são comprovadamente distintas, mas seis meses depois da saída da troika talvez seja útil voltar a dar uma olhada ao que lá se passa para tentar ler as linhas do nosso futuro.
Embora numa proporção menor do que por cá, os sectores público e privado continuam sobre-endividados. No primeiro relatório pós-troika, divulgado pelo FMI nesta quarta-feira, o elevado crédito malparado (12% do total concedido) nas contas de um sector bancário que se mexe à custa das muletas do Estado persiste como uma bomba-relógio sobre a ainda frágil recuperação da economia irlandesa e sobre a sustentabilidade da dívida pública, muito próxima dos 130% do PIB que temos cá.

Sem grande capacidade para alimentar o crescimento pela procura interna, a Irlanda têm-se voltado ainda mais para fora: as exportações representam hoje 110% do seu PIB – em Portugal estão num valor historicamente elevado, mas que é menos de metade: 40%.

Boa parte das exportações irlandesas são fruto da tradicional capacidade de atracção de investimento estrangeiro. Falar a língua franca do planeta é um activo precioso; ter uma diáspora dinâmica e endinheirada enraizada na maior economia do mundo, também; e contar com gente relativamente jovem e qualificada, idem aspas.

Mas o íman que puxa para a ilha multinacionais de todo o mundo, sobretudo norte-americanas, tem um número: 12,5%, uma taxa quase paradisíaca de IRC, que desce vertiginosamente quando convertida em taxa efectiva. Aproveitando falhas voluntárias e involuntárias da legislação fiscal nacional mas também de vários territórios alheios, designadamente dos dependentes da vizinha Coroa britânica, as multinacionais instaladas na Irlanda pagarão, de facto, uma taxa ridícula de 3,8% de imposto sobre os seus lucros, segundo os cálculos apresentados ontem aos parlamentares irlandeses por Jim Stewart, professor no Trinity College, especializado em evasão fiscal.

Dito de outro modo, quase 40 mil milhões de euros escapam anualmente ilesos mesmo perante um dos mais benévolos sistemas tributários do mundo. E este é o lado Horrível da concorrência nos impostos: gera emprego, é verdade,  mas a prazo apenas beneficia verdadeiramente um punhado de grandes empresários viciados (no mínimo) em planeamento fiscal que muitas vezes equivale a ajudas de Estado, essas, sim, severamente reguladas na União Europeia.

A solução para combater o "zapping" fiscal como écran para a evasão é mundial, e é tremendamente complexa de acordar e mais ainda de implementar com rigor. Mas como o óptimo é inimigo do bom, seria fantástico que houvesse um mínimo de harmonização efectiva ao nível da União Europeia: do método de cálculo da base tributável (assunto há décadas na agenda de Bruxelas, mas há outras tantas logo metido na gaveta pelos ministros europeus das Finanças), mas também das taxas aplicáveis.

Há na Europa quem, depois de o ter querido fazer em 2011 aquando do programa de assistência financeira, queira agora condicionar a possibilidade de uma nova renegociação dos termos de pagamento dos empréstimos europeus à Irlanda à revisão da sua taxa de IRC. Não faltará quem venha falar de chantagem. A confirmar-se, sê-lo-á; mas só até certo ponto: na guerra fiscal entre Estados não há contribuintes cumpridores vencedores.

Para Portugal, que precisa de como pão para a boca de atrair capital e de manter o pouco que cá tem, essa é uma batalha urgente e vital, na qual tem de estar disposto a lutar - provavelmente agora em campo oposto ao da Irlanda.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
19/06/14


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