O lado H da
concorrência fiscal
A Irlanda tem funcionado como uma espécie de máquina do tempo
para Portugal. A origem da crise e a capacidade de gerar consensos
políticos e sociais são comprovadamente distintas, mas seis meses depois
da saída da troika talvez seja útil voltar a dar uma olhada ao que lá
se passa para tentar ler as linhas do nosso futuro.
Embora numa proporção menor do que por cá, os sectores público e privado
continuam sobre-endividados. No primeiro relatório pós-troika,
divulgado pelo FMI nesta quarta-feira, o elevado crédito malparado (12%
do total concedido) nas contas de um sector bancário que se mexe à custa
das muletas do Estado persiste como uma bomba-relógio sobre a ainda
frágil recuperação da economia irlandesa e sobre a sustentabilidade da
dívida pública, muito próxima dos 130% do PIB que temos cá.
Sem grande capacidade para alimentar o crescimento pela procura
interna, a Irlanda têm-se voltado ainda mais para fora: as exportações
representam hoje 110% do seu PIB – em Portugal estão num valor
historicamente elevado, mas que é menos de metade: 40%.
Boa parte das exportações irlandesas são fruto da tradicional capacidade de atracção de investimento estrangeiro. Falar a língua franca do planeta é um activo precioso; ter uma diáspora dinâmica e endinheirada enraizada na maior economia do mundo, também; e contar com gente relativamente jovem e qualificada, idem aspas.
Mas o íman que puxa para a ilha multinacionais de todo o mundo,
sobretudo norte-americanas, tem um número: 12,5%, uma taxa quase
paradisíaca de IRC, que desce vertiginosamente quando convertida em taxa
efectiva. Aproveitando falhas voluntárias e involuntárias da legislação
fiscal nacional mas também de vários territórios alheios,
designadamente dos dependentes da vizinha Coroa britânica, as
multinacionais instaladas na Irlanda pagarão, de facto, uma taxa
ridícula de 3,8% de imposto sobre os seus lucros, segundo os cálculos
apresentados ontem aos parlamentares irlandeses por Jim Stewart,
professor no Trinity College, especializado em evasão fiscal.
Dito de outro modo, quase 40 mil milhões
de euros escapam anualmente ilesos mesmo perante um dos mais benévolos
sistemas tributários do mundo. E este é o lado Horrível da concorrência
nos impostos: gera emprego, é
verdade, mas a prazo apenas beneficia verdadeiramente um punhado de
grandes empresários viciados (no mínimo) em planeamento fiscal que
muitas vezes equivale a ajudas de Estado, essas, sim, severamente
reguladas na União Europeia.
A solução para combater o "zapping" fiscal como écran para a evasão é
mundial, e é tremendamente complexa de acordar e mais ainda de
implementar com rigor. Mas como
o óptimo é inimigo do bom, seria fantástico que houvesse um mínimo de
harmonização efectiva ao nível da União Europeia: do método de cálculo
da base tributável (assunto há décadas na agenda de Bruxelas, mas há
outras tantas logo metido na gaveta pelos ministros europeus das
Finanças), mas também das taxas aplicáveis.
Há na Europa quem, depois de o
ter querido fazer em 2011 aquando do programa de assistência
financeira, queira agora condicionar a possibilidade de uma nova
renegociação dos termos de pagamento dos empréstimos europeus à Irlanda à
revisão da sua taxa de IRC. Não faltará quem venha falar de chantagem. A
confirmar-se, sê-lo-á; mas só até certo ponto: na guerra fiscal entre
Estados não há contribuintes cumpridores vencedores.
Para Portugal, que precisa de como pão para a boca de atrair capital e
de manter o pouco que cá tem, essa é uma batalha urgente e vital, na
qual tem de estar disposto a lutar - provavelmente agora em campo oposto
ao da Irlanda.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
19/06/14
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