O QUE NÓS
DESCOBRIMOS
A Casa dos Espíritos
A história da única família de banqueiros portuguesa (I)
Estava um calor infernal naquele mês de Agosto de 1975, quando o
marquês de Deleitosa mandou abrir os portões da sua finca em Puebla de
Montalbán. Iria abrigar os amigos que durante a Guerra Civil de Espanha
tinham acolhido a sua família, em Santa Marta, sobre o mar de Cascais. A
história repetia-se, quarenta anos depois.
Chegaram
primeiro as mulheres e as crianças. Dias mais tarde, a salto, alguns
homens da família Espírito Santo Silva, com dois ou três colaboradores
mais próximos.
Para trás ficavam, quatro meses na prisão e a
história de duas gerações dedicadas à construção do maior banco privado
português. Num sopro, o processo Revolucionário em Curso tomara o Banco
Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), a Tranquilidade e os
passaportes dos seus maiores accionistas. As contas tinham sido
congeladas e uma imprevidência estranha deixara-os com pouco dinheiro
fora do País.
A única dinastia financeira de Portugal chegara ao
fim. Aproximava-se a hora de cada um seguir o seu caminho. Tal como nos
romances de Thomas Mann, a decadência dos bisnetos fecharia o ciclo de
uma família que tivera projecção económica, social e cultural nas três
primeiras gerações.
Para os Espírito Santo, os calores daquele
Verão de 75 passam-se entre as sombras dos pomares de Deleitosa, os
mergulhos no Tejo e a sensação única de estarem juntos e a salvo. Dão-se
conta de que só se têm uns aos outros e mais uma colecção de amigos
influentes no estrangeiro. O próprio marquês dirige, nessa altura, o
Banco Exterior de Espanha. É sogro da duquesa de Badajoz, irmã do rei. E
não faltam telegramas de apoio dos Rockfeller, de Giscard d'Estaing, de
D. Juan Carlos, do conde de Paris, Richard Nixon e Bernardo de Holanda.
"Tínhamos
uma coisa muito importante: um nome capaz de abrir portas no
estrangeiro" explica José Manuel Espírito Santo. Mesmo sem o banco,
mantinham-se no inner circle mundial. Numa tarde, à volta da
mesa, decidem continuar juntos. Como se de uma jura se tratasse. E
reerguer o grupo que o avô José Maria E.S., levantara do nada nos
últimos anos de Oitocentos.
Dava origem a uma família invulgar. Os
Espírito Santo atravessam a crise da monarquia, o caos republicano, o
marasmo salazarista e o saque da revolução com a fleuma de quem tem um
caminho só seu. Imperturbável, até nas rupturas que a vida impõe a
qualquer clã. Têm morrido cedo, os seus chefes. Mas redescobrem-se entre
si. Como se tivessem combinado continuar a saga do homem que um dia
nasceu incógnito, no 72 da Travessa dos Fiéis de Deus, em Lisboa.
O primeiro milhão
Foi
em 1850, "aos vinte dias do mês de Maio de mil oitocentos e cincoenta
Baptizei - José - que nasceu a treze do corrente ano, filho de Pays
incógnitos, apresentado nesta Igreja pela parteira Hipólita Joanna",
dita o padre Joaquim, coadjutor na igreja da Encarnação.
José
tomará o nome de Maria, Mãe de Deus, sua madrinha de baptismo; do
Espírito Santo, quando se crisma; e Silva, talvez como seu pai. Carlos
Damas, do arquivo histórico do BESCL, segue a pista do conde de Rendufe,
intendente-geral da Polícia. Atribui-lhe a paternidade da criança
nascida nos Fiéis de Deus. Tem até um retrato do fidalgo pendurado numa
das salas da Rua do Comércio. O conde era padrinho de Maria Angelina,
que criou o rapaz, a quem nunca fez passar as privações comuns a estas
crianças na Lisboa dickensiana do século XIX. "Mas factos só com
provas", adiantou o arquivista.
A verdade é que, aos 19 anos,
quando José Maria casa pela primeira vez, já é dado como cambista
estabelecido no 91 da Calçada do Combro. Um sucesso precoce que sugere
apoio familiar.
Começa por distribuir cautelas da lotaria
espanhola. Aproveita a enchente de carlistas, que, na década de 70,
procura abrigo em Lisboa. São anos difíceis para José Maria E.S. O
negócio envolve riscos que as crises financeiras de 1875-76 vêm
aprofundar. À febre bancária, seguem-se insolvências das casas de
crédito.
Numa das suas cartas, José Maria escreve: "Trabalho até
às duas da noite e sendo 5 ou 6 da manhã, volto ao trabalho das
facturas, pois o dia não me chega, às vezes para fazer compras e vendas e
cobrar outras vendas já feitas a prazo, de bilhetes e prémios."
Os
registos do jovem cambista denunciam um controlo apertado nas contas e a
caligrafia irregular de quem pouco estudou. Doseia risco com minúcia.
"Mais vale perder pouco e cedo do que muito e tarde", escreve em Março
de 1878, descontente com o negócio dos cupões espanhóis. Dedica-se à
compra e venda de títulos nacionais e estrangeiros. Aproveita uma breve
alta da economia. Mas abusa da atenção. Assina jornais estrangeiros para
estar mais informado do que a concorrência. E nunca deixa de ir à Bolsa
de Lisboa, todas as tardes, para acompanhar a evolução das cotações.
Reinveste
sempre. Como se soubesse cedo onde vai chegar. Compra lotes no Passeio
Público, que - sabe - será arrasado para a abertura da grande Avenida da
Liberdade. E descobre Campo de Ourique, antes da hora. Arrenda ali a
exploração de uma pedreira e passa a vender lotes construídos. Em dez
anos faz o seu primeiro milhão.
Regressa à banca
Por várias
vezes, José Maria E.S. desfaz as sociedades bancárias. Sabe que o seu
único capital de risco é a confiança dos depositantes. "My word is my bond." E não tolera as dívidas dos sócios. Obriga-os ao acertar as contas mas, curiosamente, volta a tomá-los como parceiros.
Na decada de 1890, o Ultimatum inglês,
as conspirações republicanas e a falência de Baring Brothers -
banqueiros do Governo - desencadeiam uma crise financeira que leva
Portugal a abandonar o regime do padrão-ouro.
José Maria obriga-se
a uma pausa bancária (1889-97). O seu património soma já 500 contos de
reis. Uma fortuna. O cambista passa a comprar prédios por toda a cidade.
Prefere a Lapa, Arroios, Santa Engrácia, Santa Isabel e o Chiado. E não
dispensa um conjunto no Paço do Lumiar.
É nesse altura que casa,
pela segunda vez, com Rita Ribeiro. Uma mulher "muito mais nova e muito
bonita", que lhe dá quatro filhos: Maria, José, Ricardo e Manuel.
Estamos
no início do século XX. José Maria tem pouco mais de 50 anos, mas
sente-se doente. Passa temporadas cada vez maiores em Interlaken, nos
Alpes suíços, de onde escreve a sua mulher insistindo na disciplina de
estudo dos três rapazes. Sobretudo nas línguas. Manda o mais velho para a
Merchiston Castle School, em Edimburgo. Quer dar-lhe uma formação capaz
de o preparar para o governo dos negócios.
Imparável, ainda
aposta em África (1906). Tem açúcar em Moçambique e algodão em Angola.
Investimentos seguros, mesmo nos anos que anunciam a desordem
republicana. José Maria E.S. nunca se envolve no carrossel político que,
há 20 anos, preenche a agenda do País. Não tem qualquer contacto com a
oligarquia política e económica do seu tempo. É um homem que vive apenas
para a construção de um império que quer deixar aos filhos. Morre em
1915.
Só o seu testamento denuncia uma timidíssima preferência
política. Da metade disponível da herança, distribui 30 contos por
asilos e albergues de infância desvalida. Neles se destaca a sociedade
de beneficência do muito republicano José Estevão.
Um escândalo em Lisboa
Com
os mesmos 19 anos com que seu pai começara a trabalhar, José E.S.
assume a liderança dos negócios da família. Acompanhara as lides
financeiras nos últimos dois anos e tem uma estratégia. Traz de
Inglaterra a ideia de lançar uma rede nacional de balcões, como nunca se
vira em Portugal. Uma teia parecida com a do Midland Bank, que captasse
os abastados depósitos da província. Muito em breve, os velhos sócios
de seu pai vão virar-se contra o rapaz.
As convulsões políticas e
cambiais na Primeira República sugerem aos mais conservadores menos
experiências. De 1914 a 1920, o custo de vida subira 14 vezes. Em 1918,
Sidónio Pais é assassinado e um ano depois surgem movimentos
restauraccionistas no Norte. A violência, o terrorismo e os golpes de
Estado multiplicam-se, criando um clima de nervosismo nos capitais.
Por
outro lado, os verdes anos de José E.S. oferecem aos seus sócios uma
oportunidade única para tomarem o controlo da casa bancária. O projeto
de construção da importante filial do Porto dará pretexto para um
ultimato ao herdeiro. As múltiplas condições eram "indiscutíveis" para
os sócios. Como indiscutíveis foram para José Espírito Santo. Sem
resposta, a questão morreria num acordo, três meses depois, que dava a
posse integral da casa à família. A 9 de abril de 1920, lançava-se
finalmente o Banco Espírito Santo, SARL. José E.S. chama então uma nova
equipa de colaboradores. São técnicos, advogados e comerciantes -
pessoas que estabelecem pontes com outros negócios. Quer a ligação do
capital financeiro ao capital comercial e industrial. Na mesma linha,
fortalece as companhias africanas.
Também na casa dos Espíritos
havia novidades. Depois dos estudos em Edimburgo, Ricardo casara, em
1918, com Mary Cohen, uma bonita judia de 16 anos, filha de um conhecido
financeiro de Gibraltar. José E.S. pelo seu lado, apaixonara-se pela
irmã, Vera Cohen, também ela de uma beleza que fica na história. Mas
Maria - a irmã mais velha dos dois irmãos - "não aprova o namoro", que
repete as famílias. Programa um casamento mais pensado: Maria José
Borges Coutinho seria a mulher ideal para José E.S.
A ideia dos
amores contrariados resulta provisoriamente. José E.S. e Vera Cohen
passam anos separados. Ele casa e tem três filhos. Ela também casa, mas
não chega a ser mãe. Um dia, em 1932, recebe um recado. José E.S iria
raptá-la nessa noite. Vera Cohen "vai dormir a casa de umas tias de onde
partem juntos, de comboio, para Paris", conta Maria João Bustorff, [no
ano 2000] presidente da Fundação Ricardo Espírito Santo.
O
escândalo ecoa na pequeníssima Lisboa dos anos 30. À excepção do duque
de Palmela, "todas as portas se fecham ao novo casal". E a presidência
do banco passa, de imediato, para Ricardo E.S., a quem José E.S. vende
todas as acções da instituição de crédito. Salva-se, assim, a jóia do
grupo.
José e Vera E.S. instalam-se em Paris num apartamento Belle Epóque,
em Passy. Priva com os duques de Windsor e estabelece contactos
internacionais úteis ao grupo em Lisboa. Interessa-se por outras áreas
financeiras. "A indústria dos seguros apaixonava-me pela sua
complexidade e diversidade." Desde sempre. Tornara-se accionista da
Tranquilidade Portuense, logo em 1918, e vai convencer os irmãos a
incluírem a empresa no grupo Espírito Santo.
Regressa a Portugal
em 1937, onde passa a viver os melhores seis meses de cada ano, no
Estoril. O seu irmão Ricardo devolve-lhe as acções ao preço de custo.
"Coisa que os irmãos Sousa, do Fonsecas, nunca conseguiram entender",
comenta Ricardo Salgado, actual presidente do grupo.
Até ao fim
dos seus dias, José E.S. será consultado sobre as grandes questões do
grupo como presidente do Conselho Geral do BESCL. É considerado o melhor
técnico financeiro de sempre da família. Domina a estratégia sem
desconhecer a oportunidade: "É a eminência parda do banco, quem
realmente manda nas questões fundamentais", explica Ferreira Neto, [no
ano 2000] presidente do BIC.
Exigente, quase duro, José E.S não dá
largas à bonomia tão repetida nos seus irmãos Ricardo e Manuel. Assim
parece. Mas quando morre, em 1968, entrega o terço disponível do
fartíssimo testamento a todos os empregados do banco e da Tranquilidade.
Privilegia, sobretudo, os que o serviram nos anos mais difíceis da
Grande Guerra e da década de 20.
Íntimo de Salazar
Mais
afortunado seria Ricardo E.S., de 1932 a 1955. Colhe os dividendos que a
II Guerra Mundial traz a Portugal e à Suíça e vive os melhores anos do
regime num excelente trato com Salazar.
Seguindo os conselhos do
irmão mais velho, será o inventor da banca de retalho em Portugal, antes
de Cupertino de Miranda. Logo em 1937, compra o Banco Comercial de
Lisboa. "A fusão foi deitar uma parede abaixo e descobrir que havia um
degrau de diferença entre os pisos", lembra um funcionário. Mas não só. O
Comercial dava aos Espíritos um corpo financeiro apto para fazer
músculo com os benefícios da guerra. As importantes transacções
internacionais, sobretudo de volfrâmio, passam pelo BESCL e dão-lhes uma
base para crescer.
As teses de Fernando Rosas e António Louçã
atribuem uma tendência germanófila a Ricardo E.S., durante a II Guerra
Mundial. Sabe-se que o banqueiro foi preso pela Resistência francesa, em
Abril de 1945, e António Telo atribui essa prisão aos negócios do BESCL
com a Alemanha. Mas, pelo seu lado, Carlos Damas, do arquivo histórico
do BESCL, vai publicar em breve outra tese sobre a travessia do Banco
nos anos da guerra ["O Banco Espírito Santo", Vol. I, Lisboa BES, 2004].
E guarda cartas - que não mostra - de israelitas americanos agradecidos
pelo apoio recebido na aflitiva escala de Lisboa.
Atribui-se ao
sangue judeu das irmãs Cohen a ajuda que o banco terá dado aos judeus
que por cá passavam, rumo às Américas. Mary convertera-se ao
cristianismo para casar com Ricardo E.S. Mas, quando morreu, tinha
escondido, do lado do coração, um alfinete com mais de vinte medalhas de
santos onde se via o brilho de uma pequena estrela de David.
Os
arquivos do BESCL, que poderiam ajudar a esclarecer a questão, foram
sendo destruídos por sucessivas vagas de aproveitamento de espaço.
Certo
é que o bom trato social de Ricardo e Manuel E.S. transformam o grupo
num íman de interesses internacionais. Pelas casas dos três irmãos
passam todas as cabeças coroadas europeias que tinham procurado refúgio
em Portugal. A pedido de Salazar, Ricardo E.S. recebera também os duques
de Windsor, durante o mês de Agosto de 1940. Hitler entra em Paris e
Churchill ainda não destinara o governo das Bahamas ao antigo rei de
Inglaterra.
Entre o Eixo e a Aliança inglesa, Salazar balance.
Em Abril de 1944, o presidente do Conselho está submetido a uma enorme
pressão. Há desassossego no ar, novos rumores de greves, escassez de pão
e são encontradas bombas relógio nas linhas férreas que conduzem a
Espanha.
Mas a maior pressão vem de fora. Churchill quer uma
definição de Portugal e Berlim aguarda a resposta de Lisboa. É do
banqueiro que Salazar obtém mais uma informação preciosa: o embaixador
do III Reich "confessa a Ricardo Espírito Santo que será retirado de
Lisboa se for imposto à Alemanha um embargo total", como escreve Franco
Nogueira.
Ricardo E.S. é íntimo de Salazar. Tanto quanto o
presidente do Conselho tem intimidade com alguém. "Quem cooptava os
amigos era Salazar", precisa Augusto Athaíde. "Governava com a sua
equipa ministerial mas contava com uma segunda estrutura que ouvia à
hora do chá."
Se os irmãos Sousa - do Fonsecas - eram mais
chamados para dar crédito às obras do Regime, Ricardo E.S. é o banqueiro
mais ouvido pelo presidente do Conselho. O que não deixa de ser
estranho. O banqueiro representava tudo o que Salazar queria à
distância. Era viajado, riquíssimo, boémio, esteta, independente e
entrara directamente para o topo da sociedade lisboeta.
Em Ricardo
E.S., por outro lado, também não se adivinha qualquer interesse em
Salazar que escape à navegação económica e financeira dos Espíritos.
"Portugal é a excepção. À sua maneira, cada um é profundamente
nacionalista, amante de Portugal", diz quem os conheceu.
Apego à estética
Desde
os 16 anos que Ricardo E.S mostra interesse por tudo quanto é
português. É gozado em casa, pelos irmãos, quando faz a sua primeira
compra: um tapete de Arraiolos do século XVIII, "em péssimo estado".
Numa tasca de Torres Vedras ouve o barulho de uns talheres mais pesados
na cozinha e quer saber do que se trata. A sua segunda compra é esse
conjunto de prata do século XVIII, com estojo de tartaruga.
A
jornalista francesa Christine Garnier escreve: "Acometido por uma
espécie de febre, de frenesim, deitou-se a viajar pelo mundo em busca de
quadros, móveis antigos, joias, pratas, porcelanas e bibelots raros
[...] Sempre que encontra no estrangeiro alguma coisa bela com a marca
de Portugal, apressa-se a comprá-la para a trazer, com amor, de volta ao
seu País."
Conta-se até que, durante a guerra, Ricardo escapou de
um atentado da Resistência francesa, descontente com tamanhas
transacções. Terá sido salvo pelo dono de uma fundição de Oeiras, com
melhores contactos na mesma Resistência.
Junta a maior colecção de
peças portuguesas e francesas do País. Em 1947, compra o Palácio
Azurara, às Portas do Sol, onde instala os objectos nacionais. Antes de
morrer, em 1953, oferece o museu ao Estado, com uma escola de restauro.
Escandaliza-se com o estado do património português e previne maiores
estragos.
Na mesma linha, entende o génio de Amália Rodrigues e
dá-lhe mundo. As suas casas são palco para gente do teatro, da música e
da cultura. Num compromisso raro entre boémia e tradição, Mary Cohen dá
abrigo a tamanha existência. Tem mundo. "Era considerada uma das
mulheres mais cultas e elegantes de Lisboa. Pierre Balmain tinha o seu
manequim em Paris. Na Primavera e no Outono mandava-lhe amostras e
modelos com comentários e recomendações", conta a neta, Maria João
Bustorff.
O apego à estética e a proximidade com o presidente do
Conselho levam Ricardo E.S. a atitudes inesperadas. Quando Salazar
decide comprar uma residência oficial em S. Bento, em Abril de 1939, o
banqueiro surge como mecenas do Estado. "Para guarnecer a parte oficial
contribui Ricardo Espírito Santo, que, sem conhecimento de Salazar,
fornece gratuitamente algumas peças de sua propriedade pessoal", escreve
Franco Nogueira.
Será pouco provável que o minucioso político não
tenha conhecido a origem dos objectos de arte. A relação com o
banqueiro era demasiado próxima, como se repara num "pormenor de
interesse" que o biógrafo de Salazar escreve sobre Christine Garnier, a
quem se atribui um romance com o presidente do Conselho. "Todas as
despesas de C.G. - transportes, hotéis,
viagens, presentes - eram integralmente pagas pelo bolso de Salazar.
Geralmente eram liquidadas por Ricardo Espírito Santo, a quem Salazar
reembolsava por cheques, cujos talões encontrei entre o seu espólio." Na
lista dos seis homens que Garnier "julga poderem informá-la sobre o
Chefe do Governo", estão, à cabeça Mário de Figueiredo, Manuel Cerejeira
e Ricardo Espírito Santo.
O fim de um ciclo
São
múltiplos os investimentos estratégicos que unem Salazar a Ricardo E.S.
O presidente do Conselho conta com o banqueiro para preparar o
financiamento da Ponte sobre o Tejo e para fundar a TAP e a Sacor. A
última, com o romeno Sein e Queirós Pereira. "O Estado precisava que as
empresas nacionais desenvolvessem a autonomia do País", explica Carlos
Damas, do Arquivo Histórico do BESCL. Também o Hotel
Ritz foi uma encomenda feita por Salazar a Ricardo E.S. e Manuel
Queirós Pereira. Fazia falta em Lisboa um hotel com categoria para
receber as mais ilustres personalidades estrangeiras.
Mas nem
sempre os dois homens se entenderam. Divergiram, pelo menos, em três
grandes questões. No pós-guerra, o banqueiro insistiu na necessidade
absoluta de Portugal aceitar o Plano Marshall; Espírito Santo sentiu os
limites impostos pelo presidente do Conselho a investimentos no
estrangeiro; e não reconheceu grandes vantagens oficiais no
desenvolvimento económico das províncias ultramarinas. "Salazar era um
grande financeiro mas à pequena escala", define Ricardo Salgado.
Jaime
Nogueira Pinto adianta: "Salazar aceitara, por necessidade de confiança
e mobilização de capitais, a ascensão destes grupos
económico-financeiros, embora os mantivesse nos limites da sua
actividade específica, cortando-lhes o passo na intervenção política.
Controlava-os como um árbitro, mantendo relações pessoais com alguns dos
seus chefes, as quais eram sobretudo de 'cortesia', em que eram
guardadas distâncias e intimidades."
Nada que evitasse os Espírito
Santo de atingir, na segunda geração, o olimpo económico-financeiro do
seu país. Quando Ricado E.S. morre, o BESCL é o primeiro banco privado
português. Destaca-se: tem o dobro dos depósitos em relação ao segundo. E
não só.
A extensa necrologia do banqueiro das artes, publicada
nos jornais de 3 de Fevereiro de 1955, é eloquente: além do BESCL,
despedem-se de Ricardo do Espírito Santo e Silva a Sacor, a TAP, a
Cidla, a sociedade agrícola de Cassequel, a sociedade de algodões de
Moçambique e as oficinas gráficas, a que se poderiam juntar
outras empresas como a Tranquilidade, a Previsão e também a Companhia
Geral Resseguradora. Mas também o Sporting Club de Cascais, a Academia
dos Amadores de Música e a Fundação que leva o seu nome. Durante o
percurso fúnebre sobrava povo nas ruas que ligam a Basílica da Estrela
ao Cemitério dos Prazeres.
Fechava-se o primeiro ciclo ascendente da família Espírito Santo Silva.
* Esta é a primeira parte da saga da família Espírito Santo,
que a jornalista Inês Dentinho publicou na revista do jornal O
Independente em Fevereiro de 2000 e que o Dinheiro Vivo voltou a
publicar duas semanas atrás.
** A segunda parte será editada amanhã, domingo, à mesma hora.
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** A segunda parte será editada amanhã, domingo, à mesma hora.
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