.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
18/05/14
.
A arte de ser português
Os portugueses
são pessoas ou números? Ou empresas? A rapaziada ligada ao futebol, numa
cedência ao materialismo mais cego, não tem dúvidas: as pessoas que se
lixem. No "rescaldo" (belo conceito) do jogo entre o Benfica e o
Sevilha, a questão que indignava a maioria dos comentadores indígenas
prendia-se com as supostas infracções cometidas pelo guarda-redes dos
espanhóis quando dos penáltis falhados pelos portugueses. Sucede que o
espanhol em causa é português e os portugueses em causa são
estrangeiros. E se, num mundo ideal, não haveria nacionalismo nenhum,
num mundo de nacionalismos toleráveis os comentadores estariam do lado
do conterrâneo. Já no estranho mundo da bola, os comentadores,
justamente por alegado amor ao País, preferem os brasileiros, paraguaios
e sérvios do Benfica, que, aliás, utilizou tantos ou tão poucos
portugueses quanto o Sevilha. Suponho que depois sejam estes patriotas a
criticar a mudança fiscal do Pingo Doce para a Holanda.
Porém, a
final da Liga Europa ou lá o que é não se ficou por aqui no que
respeita à arte de ser português. Dado que o Benfica perdeu, inúmeros
especialistas trataram imediatamente de descobrir as razões pelas quais o
Benfica não merecia perder. Além das tais infracções do guarda--redes,
houve ainda uma resma de penáltis por assinalar, a "maldição" de Béla
Guttmann, as misteriosas simpatias do presidente da UEFA, a presença de
um príncipe espanhol na tribuna de honra do estádio (pesado contraponto,
presume-se, a um autarca e um ministro na embaixada lusitana), os
árbitros alemães, etc.
Contas feitas, está instalada a tese:
salvo para o turismo efémero no Douro e no Algarve, os outros não gostam
de nós e querem o nosso mal. Dos penáltis por marcar à conspiração dos
mercados para afundar a economia caseira vai um grande salto para a
humanidade em geral e um pequeníssimo passo para o português típico,
habituado a responsabilizar os demais pelas próprias desgraças. Como a
austeridade em vigor não resulta de sucessivas governações criminosas
mas da troika, também não custa imputar o desaire da "família
benfiquista" aos interesses da banca internacional - e convém não
esquecer que Guttmann era judeu.
Por sorte, em última instância,
ninguém nos verga: na internet corre já uma petição a reclamar a
repetição do jogo. Se, por pressão do príncipe, de Platini e da sra.
Merkel, a petição não funcionar, pode-se sempre convertê-la numa
angariação de fundos de modo a oferecer ao Benfica a taça que
vergonhosamente lhe roubaram. Há uns 30 anos, a "família portista" fez o
mesmo após mais uma derrota injusta e uma vitória moral, a moral de uma
história velha de séculos. Na bola e no resto.
Domingo, 11 de Maio
Acredite se quiser
O
partido LIVRE, diz a Wikipédia, "distingue-se de outros partidos
portugueses pela forma de organização interna. Em particular, o método
de selecção dos seus candidatos às eleições a que se apresenta, segue o
formato de primárias abertas, que rompe com a tradição de escolha de
candidatos por convite de direcções partidárias. Deste modo, todos os
cidadãos eleitores podem ser candidatos, desde que se revejam nos
princípios fundadores do LIVRE".
O texto acima, de belo conteúdo e
deficiente gramática, destaca o principal motivo de orgulho do partido
fundado pelo ainda eurodeputado Rui Tavares. O próprio Dr. Tavares,
aliás, também reafirmou em tempos e em múltiplas entrevistas a
importância das "primárias" abertas, que poriam em pé de igualdade, por
exemplo, o proprietário de um quiosque na Baixa da Banheira e qualquer
elemento do núcleo original desta irreverente associação política. Só
por si, as "primárias" abertas constituíam a prova do desapego do Dr.
Tavares pelo cargo em Estrasburgo, já que tamanha aversão a elites e
cliques tornaria praticamente impossível a elegibilidade do senhor.
Isto
passou-se há meses. Há dias, com o atraso de quem nunca votou para o
Parlamento Europeu e não será desta vez que tenciona dedicar cinco
minutos ao assunto, descobri que afinal o cabeça de lista do LIVRE é -
sentem-se bem - o Dr. Tavares. Trata-se de uma coincidência espantosa:
num universo de milhões de potenciais candidatos, a escolha recai
justamente no único português cuja nomeação é susceptível de levantar
suspeitas sobre a seriedade e, já agora, a liberdade do LIVRE. A
atenuante é a circunstância de, tudo somado e a acreditar nas sondagens,
o Dr. Tavares continuar com as mesmas hipóteses de ser eleito que o
proprietário do quiosque na Baixa da Banheira.
Terça-feira, 13 de Maio
A democracia ilimitada
José
Vítor Malheiros, um senhor que escreve no Público, escreveu, um destes
dias, sobre as "europeias": "O espectáculo da campanha vai ser triste,
mas o que será mais desolador será ver a quantidade de votos que os
partidos do Governo vão, apesar de tudo, recolher, ilustrando as
limitações da democracia."
De facto, a democracia assim não vai a
lado nenhum. Enquanto o povo não for educado ou não se proibir o voto
nos "partidos do Governo" (tradução: na "direita"), de acordo com o que
aconteça primeiro, nunca atingiremos o "domínio da real alternativa e da
construção de uma sociedade mais justa" (decorre do artigo que o PS,
cuja prevista vitória será - cito - "desoladora", também não serve).
Bem
vistas as coisas, o que é que queremos: uma democracia limitada ou
ilimitada? Todos em coro, agora: ilimitada, claro! Ora então é muito
fácil. Basta que os cidadãos abdiquem de votar ou pelo menos não votem
sem antes perguntar ao Sr. Malheiros em qual quadradinho devem pôr a
cruzinha. Parece impossível que ainda ninguém se tivesse lembrado antes
de uma solução tão evidente e capaz de, num ápice, acabar com as
injustiças, a desigualdade, a corrupção, a propaganda, a dívida, o
atraso de vida e, de caminho, a escolha popular, tudo catástrofes que
deprimem o pobre Sr. Malheiros, sinónimo do déspota esclarecido. E
esclarecedor.
Quarta-feira, 14 de Maio
Estado de embriaguez
Para
evitar equívocos, esclareço que sou praticamente abstémio. Apanhei os
pifos necessários - e alguns suplementares - na idade devida, leia-se os
últimos anos da adolescência e os primeiros em que nos recusamos a ser
adultos. Em 2003, na despedida de solteiro de um amigo, despedi-me da
alegria etílica com uma recaída voluntária, épica e isolada. Hoje, bebo
apenas água porque gosto, porque as minhas entranhas são sensíveis desde
o berço, porque vi pelo menos dois conhecidos literalmente
enlouquecerem de amor pela garrafa e porque até o vago prazer de dois
dedos de vinho tinto me foi retirado por aquelas reportagens televisivas
em que sujeitos solenes agitam copos durante cinquenta minutos.
Após
esta introdução demonstrativa da minha pureza, posso afirmar com
legitimidade que fiquei satisfeito perante o fracasso dos regulamentos
que visavam vedar aos menores de 18 anos o consumo de bebidas
"espirituosas" e aos menores de 16 o consumo de qualquer bebida
alcoólica, incluindo, presumo, o anis escarchado. Há um ano, saiu a lei.
Na semana passada, saiu a constatação do respectivo enxovalho: ao que
parece, os meninos e as meninas arranjam sempre maneira de fintar o zelo
estatal e acabar a noite de rastos. Ainda bem.
Por um lado, logo
que não se aliviem à porta aqui de casa, é saudável que os meninos e as
meninas gastem as figuras tristes na época propícia. Embora nenhum dos
casos me diga respeito, prefiro o estudante liceal que, por pressão dos
pares, despacha oito shots de vodka como se não houvesse amanhã (e no
dia seguinte ele próprio gostaria de poder tomar essa opção) ao veterano
que, por vergonha, esconde a garrafa de Gordon"s no autoclismo. Tentar
espremer a vida não é igual a tentar esquecê-la.
Por outro lado, o
principal é que a derrota da lei significa um revés nos esforços do
Estado para velar por nós. Às vezes, é óptimo ver o zelo de quem manda
deparar com o desprezo de quem obedece. Não fosse assim, e há muito
estaríamos transformados em zombies eternamente abaixo da maioridade.
Ou, o que é pior, nas abencerragens com "consciência cívica" que o Dr.
Sampaio tanto reivindicava. Entre o respeito pela ASAE e o desrespeito
pelo fígado, a escolha não custa. Nem espanta que, segundo as
Estatísticas Mundiais de Saúde 2014, os portugueses acima dos 15 anos
ocupem o 11.º posto no ranking dos alcoólatras da Terra. Brindemos a
isso, com eventuais reticências. E com Luso, se não se importam.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
18/05/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário