Conto de Natal
Joãozinho, o espião feio
e estúpido do regime
Conseguiu tudo na vida por cunhas partidárias. Feio, seboso, barrigudo, acabou por ser condenado a 25 anos de cadeia por três homicídios. Impotente, apanhava mulheres sozinhas, matava-as e deitava-lhes fogo. "É um miserável", disse a juíza
Joãozinho
de nome próprio, Carvalho de apelido. Joãozinho ficou Joãozinho por
vontade da mãe que ficou horrorizada quando a enfermeira da Alfredo da
Costa lhe atirou aquela coisa para cima da barriga. Feio, raquítico,
parecia uma ratazana dos esgotos. A mulher olhou e imaginou logo ali o
que seria a vida daquele desgraçado. Intuição de mãe. Pediu ao marido,
chefe de uma repartição de finanças, que metesse uma cunha no registo
para a coisa chamar-se Joãozinho. Seria uma forma de as pessoas terem
pena e não lhe fazerem muito mal. Na creche, na escola, na vida. O pai,
Carlos Carvalho, meteu a cunha ao seu amigo do registo e a coisa foi
oficializada. Joãozinho ficou mesmo Joãozinho Carvalho. A desgraça ia
começar. A burrice do menino revelou-se logo na creche da junta de
freguesia. Os outros meninos e meninas faziam troça da coisa, as
educadoras e funcionárias percebiam. Joãozinho berrava como um cabrito
dia sim, dia sim. Feio como uma ratazana, raquítico e estúpido, fez a
escola primária à conta do eduquês do regime que proíbe chumbos, perdão,
retenções de estúpidos e imbecis. Seguiu para o preparatório e
secundário e o filme repetiu-se.
O pai arranjou-lhe explicadores à borla para tudo e mais alguma
coisa. Ser chefe de finanças é ser chefe de finanças e com o fisco não
se brinca. O respeitinho acima de tudo. E foi assim que o Joãozinho, à
conta do eduquês, das estatísticas e do fisco acabou o liceu. A média
não dava para entrar em nenhum politécnico. Na emergência, o pai
aconselhou-se com o presidente da junta em funções. "Meta-o numa privada
a fazer ciência política ou estudos internacionais e depois já sabe
como é. Mexe-se uns cordelinhos e o rapaz fica encaminhado". Assim foi.
Sem saber ler nem escrever, raquítico, burro, feio como uma ratazana de
esgoto, Joãozinho entrou na faculdade. A mãe Clarisse, com o aborto na
faculdade, pediu ao marido um emprego. Estava farta de estar em casa a
aturar o Joãozinho, queria sair e ajudar o orçamento familiar já
apertado com os cortes nos ordenados dos funcionários públicos e a
despesa com os estudos do menino. Carvalho pensou, pensou e só viu uma
saída. A mulher mal sabia escrever, não percebia nada de computadores,
nunca tinha pegado num livro ou num jornal, mas era justo arranjar-lhe
um emprego. Num domingo frio de Fevereiro foi ter ao café com o
presidente da junta, que aproveitava o dia do Senhor para discutir
política com os fregueses. Carlos entrou e fez-se um longo silêncio.
Sentou-se ao pé do presidente e disse-lhe que ao que vinha.
O outro coçou a cabeça, uma, duas vezes, e atirou-lhe: "Amigo Carlos,
alguma coisinha se há-de arranjar". Um mês depois Clarisse entrava na
junta para ocupar o lugar de secretária do presidente. Joãozinho lá
andava à volta das ciências políticas. Com a idade deixou crescer um
passa piolhos, pêra e bigode pretos. Nojentos. Tinha miopia e os óculos
davam-lhe um ar ainda mais imbecil. Cabelo seboso curto penteado para o
lado, caspa em cima dos ombros, barriga saliente, pernas curtas e
tortas, Joãozinho era agora conhecido na faculdade como o Cevado do
Caralho. Como o pai pagava as propinas a horas e apresentou-se ao reitor
como chefe de finanças, o Cevado acabou o curso às costas de Bolonha.
Não houve festa em casa. Clarisse, diligente secretária da junta, temia o
pior. Joãozinho em casa, sem emprego e com um canudo no bolso. Um
pesadelo. Falou com o marido. Carlos pôs os óculos, coçou a cabeça,
baixou o som da televisão. "Pois é, Clarisse. É um bom sarilho. E isto
está cada vez pior". Na manhã seguinte chegou à repartição e ligou ao
presidente da junta:
- Bom dia. Preciso falar consigo com urgência.
- Ó Diabo. É a loja da minha mulher? Não me diga que é o IVA outra vez!
- Não. Fique descansado. Tenho o assunto controlado.
- Uff. Que alívio. Então o que é?
- É melhor não falarmos ao telefone. Isto anda cheio de escutas.
- É verdade. A quem o diz. Quer passar aqui na junta?
- Se não se importasse era melhor dar um salto aqui à repartição. Dá menos nas vistas. Não quero mexericos.
- Como quiser. Amanhã passo aí.
- Muito bem. Bom dia e até amanhã.
Carlos expôs o assunto ao presidente da junta. Precisava de um
emprego para o Joãozinho. Isso vai ser mesmo o Diabo. O presidente da
junta olhou para Carlos e pensou que tinha ali uma excelente
oportunidade de se livrar de umas dívidas gordas de IVA da estúpida da
mulher. - Olhe, deixe-me ver o que posso fazer. Alguma coisa se há-de
arranjar para o rapaz.
O presidente da junta falou com o presidente da secção do partido, o
presidente da secção do partido falou com o vice-presidente da concelhia
do partido, o vice-presidente da concelhia do partido falou com o vogal
da distrital do partido, o vogal da distrital do partido falou com um
adjunto de um secretário de Estado do partido, o adjunto do secretário
de Estado do partido deu um toque ao chefe de gabinete do secretário de
Estado do partido, o chefe de gabinete do secretário de Estado do
partido abordou vagamente o assunto com o próprio do secretário de
Estado do partido e uma semana depois o secretário de Estado do partido
teve uma ideia que transmitiu de imediato ao seu chefe de gabinete: "Vai
abrir um concurso para o SIS. Diga lá ao adjunto que esse rapaz de que
me falou pode concorrer para ver se tem jeitinho para a espionagem". A
mensagem passou rapidamente até chegar a Carlos Carvalho. Três meses
depois Joãozinho era espião. Lia jornais, espionava os inimigos do
partido do secretário de Estado do partido e o ministro do secretário de
Estado do partido. A família Carvalho comia um bacalhau dia 24 de
Dezembro e estava feito o Natal. Na noite de 25 o espião Joãozinho foi
até um bar da baixa. Espiar. Pouca gente. A um canto uma mulher na casa
dos 50 anos, loira, com umas belas mamas. Bebia cerveja atrás de
cerveja. Olhou para o Joãozinho.
- Bom Natal.
- Bom Natal.
- Quer beber uma comigo?
Uma hora depois Joãozinho estava em casa da loira. A mulher atirou-se para o sofá.
- Vem cá. Faz coisas bonitas à menina. Joãozinho aproximou-se a medo.
A mulher agarrou-lhe a cabeça e com força esmagou-a contra a vagina.
Uma, duas, muitas vezes. Joãozinho não respirava. Quando se libertou
estava com a cara encarnada, molhada, um nojo.
- Tira as calças meu maricas.
Joãozinho, com os óculos sujos e a cabeça a latejar, baixou as calças.
- O que é isso, seu merdas? Isso é uma pila? Vai-te foder.
Joãozinho atirou-se para cima da mulher e estrangulou-a. Levantou-se,
puxou as calças, limpou a cara com a mão, olhou à volta. Agarrou numa
caixa de fósforos e pegou fogo ao sofá.
Dois dias depois a morte fazia manchete de um tablóide: "Loira morre
incendiada". Crime, dizia a PJ. Joãozinho leu e sentiu pela primeira vez
na vida que era um homem. Matou a mulher sem as cunhas do pai. Tinha
feito tudo sozinho. Aquela vaca já era. Joãozinho andava cada vez mais
cheio de si. Entrava no café do bairro e olhava os clientes do alto do
seu metro e cinquenta e nove centímetros de altura. Só pensava na vaca
loira a arder morta no dia 25 de Dezembro. Passou um ano a pensar nas
chamas e na loira a olhar para a sua pila. Ficava vermelho de ódio.
Putas, são todas putas, estas vacas. E no dia 25 de Dezembro do ano
seguinte Joãozinho pegou fogo a outra vaca loira. "Serial killer mata
outra vez no Natal", era a manchete do tablóide. Joãozinho só pensava no
Natal. E quando chegou dia 25 lá ardeu a terceira vaca loira. Azar. Uma
câmara de vigilância apanhou o Joãozinho. Foi condenado a 25 anos de
prisão. "Você é um miserável", concluiu a juíza. A mãe não assistiu.
Estava na junta. O pai também não. Estava na repartição.
UM CONTO DE ANTÓNIO RIBEIRO FERREIRA
IN "i"
25/12/13
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