25/12/2013

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Conto de Natal

Joãozinho, o espião feio 
e estúpido do regime

Conseguiu tudo na vida por cunhas partidárias. Feio, seboso, barrigudo, acabou por ser condenado a 25 anos de cadeia por três homicídios. Impotente, apanhava mulheres sozinhas, matava-as e deitava-lhes fogo. "É um miserável", disse a juíza

Joãozinho de nome próprio, Carvalho de apelido. Joãozinho ficou Joãozinho por vontade da mãe que ficou horrorizada quando a enfermeira da Alfredo da Costa lhe atirou aquela coisa para cima da barriga. Feio, raquítico, parecia uma ratazana dos esgotos. A mulher olhou e imaginou logo ali o que seria a vida daquele desgraçado. Intuição de mãe. Pediu ao marido, chefe de uma repartição de finanças, que metesse uma cunha no registo para a coisa chamar-se Joãozinho. Seria uma forma de as pessoas terem pena e não lhe fazerem muito mal. Na creche, na escola, na vida. O pai, Carlos Carvalho, meteu a cunha ao seu amigo do registo e a coisa foi oficializada. Joãozinho ficou mesmo Joãozinho Carvalho. A desgraça ia começar. A burrice do menino revelou-se logo na creche da junta de freguesia. Os outros meninos e meninas faziam troça da coisa, as educadoras e funcionárias percebiam. Joãozinho berrava como um cabrito dia sim, dia sim. Feio como uma ratazana, raquítico e estúpido, fez a escola primária à conta do eduquês do regime que proíbe chumbos, perdão, retenções de estúpidos e imbecis. Seguiu para o preparatório e secundário e o filme repetiu-se. 

O pai arranjou-lhe explicadores à borla para tudo e mais alguma coisa. Ser chefe de finanças é ser chefe de finanças e com o fisco não se brinca. O respeitinho acima de tudo. E foi assim que o Joãozinho, à conta do eduquês, das estatísticas e do fisco acabou o liceu. A média não dava para entrar em nenhum politécnico. Na emergência, o pai aconselhou-se com o presidente da junta em funções. "Meta-o numa privada a fazer ciência política ou estudos internacionais e depois já sabe como é. Mexe-se uns cordelinhos e o rapaz fica encaminhado". Assim foi. Sem saber ler nem escrever, raquítico, burro, feio como uma ratazana de esgoto, Joãozinho entrou na faculdade. A mãe Clarisse, com o aborto na faculdade, pediu ao marido um emprego. Estava farta de estar em casa a aturar o Joãozinho, queria sair e ajudar o orçamento familiar já apertado com os cortes nos ordenados dos funcionários públicos e a despesa com os estudos do menino. Carvalho pensou, pensou e só viu uma saída. A mulher mal sabia escrever, não percebia nada de computadores, nunca tinha pegado num livro ou num jornal, mas era justo arranjar-lhe um emprego. Num domingo frio de Fevereiro foi ter ao café com o presidente da junta, que aproveitava o dia do Senhor para discutir política com os fregueses. Carlos entrou e fez-se um longo silêncio. Sentou-se ao pé do presidente e disse-lhe que ao que vinha. 

O outro coçou a cabeça, uma, duas vezes, e atirou-lhe: "Amigo Carlos, alguma coisinha se há-de arranjar". Um mês depois Clarisse entrava na junta para ocupar o lugar de secretária do presidente. Joãozinho lá andava à volta das ciências políticas. Com a idade deixou crescer um passa piolhos, pêra e bigode pretos. Nojentos. Tinha miopia e os óculos davam-lhe um ar ainda mais imbecil. Cabelo seboso curto penteado para o lado, caspa em cima dos ombros, barriga saliente, pernas curtas e tortas, Joãozinho era agora conhecido na faculdade como o Cevado do Caralho. Como o pai pagava as propinas a horas e apresentou-se ao reitor como chefe de finanças, o Cevado acabou o curso às costas de Bolonha. Não houve festa em casa. Clarisse, diligente secretária da junta, temia o pior. Joãozinho em casa, sem emprego e com um canudo no bolso. Um pesadelo. Falou com o marido. Carlos pôs os óculos, coçou a cabeça, baixou o som da televisão. "Pois é, Clarisse. É um bom sarilho. E isto está cada vez pior". Na manhã seguinte chegou à repartição e ligou ao presidente da junta: 

- Bom dia. Preciso falar consigo com urgência.
- Ó Diabo. É a loja da minha mulher? Não me diga que é o IVA outra vez!
- Não. Fique descansado. Tenho o assunto controlado.
- Uff. Que alívio. Então o que é?
- É melhor não falarmos ao telefone. Isto anda cheio de escutas.
- É verdade. A quem o diz. Quer passar aqui na junta?
- Se não se importasse era melhor dar um salto aqui à repartição. Dá menos nas vistas. Não quero mexericos.
- Como quiser. Amanhã passo aí.
- Muito bem. Bom dia e até amanhã. 

Carlos expôs o assunto ao presidente da junta. Precisava de um emprego para o Joãozinho. Isso vai ser mesmo o Diabo. O presidente da junta olhou para Carlos e pensou que tinha ali uma excelente oportunidade de se livrar de umas dívidas gordas de IVA da estúpida da mulher. - Olhe, deixe-me ver o que posso fazer. Alguma coisa se há-de arranjar para o rapaz. 

O presidente da junta falou com o presidente da secção do partido, o presidente da secção do partido falou com o vice-presidente da concelhia do partido, o vice-presidente da concelhia do partido falou com o vogal da distrital do partido, o vogal da distrital do partido falou com um adjunto de um secretário de Estado do partido, o adjunto do secretário de Estado do partido deu um toque ao chefe de gabinete do secretário de Estado do partido, o chefe de gabinete do secretário de Estado do partido abordou vagamente o assunto com o próprio do secretário de Estado do partido e uma semana depois o secretário de Estado do partido teve uma ideia que transmitiu de imediato ao seu chefe de gabinete: "Vai abrir um concurso para o SIS. Diga lá ao adjunto que esse rapaz de que me falou pode concorrer para ver se tem jeitinho para a espionagem". A mensagem passou rapidamente até chegar a Carlos Carvalho. Três meses depois Joãozinho era espião. Lia jornais, espionava os inimigos do partido do secretário de Estado do partido e o ministro do secretário de Estado do partido. A família Carvalho comia um bacalhau dia 24 de Dezembro e estava feito o Natal. Na noite de 25 o espião Joãozinho foi até um bar da baixa. Espiar. Pouca gente. A um canto uma mulher na casa dos 50 anos, loira, com umas belas mamas. Bebia cerveja atrás de cerveja. Olhou para o Joãozinho. 

- Bom Natal.
- Bom Natal.
- Quer beber uma comigo?
Uma hora depois Joãozinho estava em casa da loira. A mulher atirou-se para o sofá.
- Vem cá. Faz coisas bonitas à menina. Joãozinho aproximou-se a medo. A mulher agarrou-lhe a cabeça e com força esmagou-a contra a vagina. Uma, duas, muitas vezes. Joãozinho não respirava. Quando se libertou estava com a cara encarnada, molhada, um nojo.
- Tira as calças meu maricas.
Joãozinho, com os óculos sujos e a cabeça a latejar, baixou as calças.
- O que é isso, seu merdas? Isso é uma pila? Vai-te foder.
Joãozinho atirou-se para cima da mulher e estrangulou-a. Levantou-se, puxou as calças, limpou a cara com a mão, olhou à volta. Agarrou numa caixa de fósforos e pegou fogo ao sofá. 

Dois dias depois a morte fazia manchete de um tablóide: "Loira morre incendiada". Crime, dizia a PJ. Joãozinho leu e sentiu pela primeira vez na vida que era um homem. Matou a mulher sem as cunhas do pai. Tinha feito tudo sozinho. Aquela vaca já era. Joãozinho andava cada vez mais cheio de si. Entrava no café do bairro e olhava os clientes do alto do seu metro e cinquenta e nove centímetros de altura. Só pensava na vaca loira a arder morta no dia 25 de Dezembro. Passou um ano a pensar nas chamas e na loira a olhar para a sua pila. Ficava vermelho de ódio. Putas, são todas putas, estas vacas. E no dia 25 de Dezembro do ano seguinte Joãozinho pegou fogo a outra vaca loira. "Serial killer mata outra vez no Natal", era a manchete do tablóide. Joãozinho só pensava no Natal. E quando chegou dia 25 lá ardeu a terceira vaca loira. Azar. Uma câmara de vigilância apanhou o Joãozinho. Foi condenado a 25 anos de prisão. "Você é um miserável", concluiu a juíza. A mãe não assistiu. Estava na junta. O pai também não. Estava na repartição. 

UM CONTO DE ANTÓNIO RIBEIRO FERREIRA

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25/12/13

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