Democracia Zombie
Este não é um artigo sobre a série de televisão Walking Dead. É
um artigo sobre a nossa experiência contemporânea com o sector bancário
da economia e como ele se transformou e chegou, em situações limites, a
transformar as nossas democracias em democracias zombie, ou democracias
mortas-vivas.
Estávamos em 2009 e havia passado um ano desde o
início da crise. Um conjunto de jovens académicos, entre os quais eu
próprio, jovens empreendedores e jovens quadros da administração
pública, originários de todo mundo, estavam reunidos na Harvard Kennedy
School para uma conversa de almoço com David Rubinstein, um dos gestores
de uma das maiores firmas de Private Equity, o Carlyle Group.
O
nosso orador, também financiador do evento, comentava que na opinião
pública dos EUA as empresas de Private Equity eram demonizadas de tal
modo que nem no Capitólio os congressistas as queriam receber, quase
obrigando-as a juntarem-se aos lobbies das empresas de jogo de
Las Vegas para fazerem valer as suas posições – parecia então que
efectivamente tudo se conjugava para compreender que para além da
metáfora da crise como casino global, a realidade era mesmo a de como a
indústria de investimentos encontrava o seu próprio semelhante na
indústria do jogo.
Mas nem tudo era mau, pois como Rubinstein
explicava – deixando-nos algo atónitos – a crise era boa para as firmas
de Private Equity. Ou seja, elas haviam obtido fundos dos bancos para
investir e, com a crise de 2008 e a fragilidade da banca, agora as
firmas de Private Equity, que tivessem liquidez, estavam a comprar ao
preço da chuva as dívidas por si contraídas aos bancos. Permitindo-lhes,
assim, ficar proprietárias em pleno das empresas por menos de metade do
seu valor. Tal sucedia, pois os bancos precisavam urgentemente de
realizar dinheiro vivo.
No meio da crise quem efectivamente estava
mal (e mal continua) eram as pessoas em geral. Mas os bancos também não
estavam em bom estado, tanto os de investimento como os outros.
Se
o Estado não falava com as empresas de Private Equity e estas também
não precisavam de ser salvas, já com os bancos a questão era diferente –
estes haviam-se tornado em grande medida zombies, incapazes de se
salvarem sozinhos.
Os “Bancos Zombies” eram os que embora ainda de
porta aberta perante o Mercado, na realidade encontravam-se carregados
de activos tóxicos. Mas o que tornava o sector bancário verdadeiramente
zombie, no contexto de crise, era o facto de necessitar de se alimentar
dos nossos impostos, como forma de se revalorizar de novo.
Em
Espanha chamam-lhes “Bancos Maus”, mas eu prefiro Zombies, porque não se
trata de qualificar a bondade ou não das suas práticas, mas as escolhas
de quem os gere e as suas consequências.
John Thompson, sociólogo
em Cambridge, designa a relação entre o Estado contemporâneo e os
Bancos, num livro a publicar em Março em Portugal, como um pacto
Faustiano. Referindo-se, assim, ao Fausto de Goethe, personagem
que, conforme o contrato assinado com seu próprio sangue, serviria o
diabo, em troca da sua alma. O pacto a que Thompson se refere é aquele
que Estados e Sector Bancário construíram na Europa nos últimos quatro
anos.
Durante grande parte da história o empréstimo de dinheiro
por parte dos bancos aos Estados, assegurava a solvabilidade destes
últimos. Em troca os Estados deveriam assegurar inflação reduzida e a
recolha de impostos que permitissem, em simultâneo, não desvalorizar o
dinheiro emprestado e pagar juros e capital obtido.
Mas, a prática
mais recente introduziu outras perspectivas. Os bancos continuaram a
emprestar dinheiro aos Estados, mas estes últimos têm de assegurar não
só a não desvalorização e a obtenção de receitas por via de impostos,
mas também a garantia da solvabilidade dos bancos. Pois, caso os bancos
entrem em situação de pré-falência os Estados terão de ser os seus
fiadores.
Essa mudança introduziu uma nova condição
económico-financeira na qual a sobrevivência de Bancos e Estados passou a
estar intimamente ligada entre si.
Em teoria estas alterações
poderiam não ter perturbado o funcionamento das nossas democracias, mas a
realidade é que perturbaram. Pois, hoje em dia as democracias da crise,
isto é as europeias, entraram numa fase de impossibilidade democrática
da qual necessitam ser urgentemente resgatadas.
Essa
impossibilidade democrática resulta da alteração de prioridades do
Estado. Pois, da preocupação central na gestão das suas receitas com o
intuito de assegurar o bem-estar das suas populações, passámos a ter em
igualdade de prioridades o bem-estar dos cidadãos e o bem-estar de um
dado tipo de empresas, os bancos. Algo que poderia não ser um problema
em si, não fora a incompatibilidade entre esses objectivos, por via da
oposição entre os valores do interesse próprio associados em geral à
cultura empresarial financeira (embora com algumas, mas infelizmente
poucas, excepções) e os interesses de pertença social na génese da
gestão do Estado.
Os bancos sempre necessitaram de Estados fortes,
capazes de obter receitas para remunerar os empréstimos, e os Estados
sempre necessitaram de bancos fortes capazes de prestar a sua função
central nas economias. Mas há hoje algo mais no ar.
A existência
de bancos que assegurem o investimento e o aforro nas sociedades é uma
necessidade fundamental para as economias, a existência de governos de
Estados fortes que sejam capazes de gerir o bem social também. Mas
também necessitamos de democracias capazes de hierarquizar o interesse
das pessoas acima do interesse das organizações e isso faz-se com
políticos, políticas, partidos políticos e movimentos sociais que tenham
como valor primordial a pertença social e não o interesse próprio.
Essa
forma de privilegiar a defesa do interesse próprio perante o social
está, melhor do que em qualquer outro lado, visível no paradoxo
seguinte. Aquilo que é criticável na dimensão da relação entre individuo
e Estado deixou de ser criticável na relação daquele com as empresas,
ou pelo menos entre as empresas do sector bancário e o Estado. Embora
não concordando com essas generalizações, é comum ouvirmos afirmar, em
certas franjas do pensamento político, que quem tem um subsídio de
desemprego elevado ou o aufere durante um longo período não tem
motivação para mudar a sua situação.
No entanto, poucos são os que
questionam se os apoios continuados e a certeza de que sempre existirão
apoios financeiros do Estado para salvar as empresas do sector bancário
não produzirá efeitos semelhantes. Isto é, se algum dia seremos capazes
de erradicar as más práticas do sector financeiro e a dependência deste
para com os nossos impostos, bem como, o permanente aumento das dívidas
que os Estados terão de continuar a contrair para assegurar a boa saúde
dos possíveis futuros ou reincidentes bancos zombies.
Neste
momento em países próximos, mas também em outros longe de nós, estão em
curso exemplos demonstrativos de que sabemos evitar continuar a viver em
democracias zombie.
Há locais e experiências que demonstram
saber contrariar as lógicas assentes no interesse próprio. Na Islândia,
os partidos mais progressistas souberam entender as aspirações das
pessoas e foram eles próprios a validar um procedimento constituinte de
cariz diferente experimentando um novo tipo de política, conduzindo a
uma nova constituição e novas formas de envolvimento político,
regenerando assim os próprios partidos e concedendo-lhes futuro.
Por
oposição, em Espanha os partidos políticos parecem não conseguir muito
mais do que escândalos e o consolidar da sua incapacidade regenerativa,
levando a que sejam cidadãos e experiências como as do Partido do
Futuro, ou Partido X, a dar cartas na experimentação e reconstrução das
instituições políticas. A pergunta que fica é: e em Portugal quando e
como começaremos a libertar-nos desta Democracia e Economia Zombie e a
reconstruir uma Democracia Real a par de uma Economia Real?
Investigador e coordenador do Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE
IN "PÚBLICO"
30/01/13
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