30/09/2012

LUÍS OSÓRIO



A história 
     que Lula da Silva 
           nunca esquecerá

 Sempre que leio notícias acerca da Adega da Tia Matilde é Eusébio quem ocupa o centro do palco – porque quase todos os dias ali almoça, porque o faz há meio século, porque gosta de lampreia, peixe fresco ou caldeirada, porque isto e aquilo. 

Curioso, a mim acontece-me exactamente o contrário: ao ver Eusébio é de Emílio Andrade Júnior que me lembro, o Tio Emílio da história que agora lhe conto.
Continua a controlar travessas, mesas e sensibilidades. Fá-lo com sabedoria e tranquilidade, como acontece apenas com os homens de contas realmente saldadas – muitos lhe dizem isso, o próprio Lula da Silva afirmou-o da última vez que esteve em Lisboa… Perguntou-lhe pelo segredo da sua longevidade, pediu-lhe para lhe contar da vida de sua mãe, a Tia Matilde. 

Emílio começou por evitar contá-la. Apesar de tudo não era coisa que se pudesse fazer sem perder algum tempo, minutos que os políticos nunca ou raramente têm. Lula foi diferente e tornou o negócio simples: «Sei que não está na carta, mas se o Senhor Emílio me arranjar um bom bacalhau à Brás terei todo o interesse em ouvir a história de sua mãe, demore o tempo que demorar».
Não sei se precisei do tempo de Lula para ficar a conhecer a Tia Matilde. E também não sei como está o seu para agora a ouvir da minha boca… Posso tentar, julgo que valerá a pena. 

Tudo começou com cores de vida: Matilde juntou-se cedo com um homem que falava no sonho de serem independentes. E assim parecia. Abriram a sua primeira casa de pasto, onde preparavam o mata-bicho popular entre os que trabalhavam nos caminhos-de-ferro, na descarga da batata e do carvão, na venda de jogo e nos pedreiros da calçada e empregados fabris. Emílio tinha cinco anos e aos 12 já os pais estavam estabelecidos no sítio onde ainda hoje está. 

Relação difícil a dos pais. Matilde e o pequeno Emílio sofreram muito com o homem da casa – tornou-se uma verdadeira obsessão, para um e para outro, encontrar solução para que o sonho do passado pudesse sobreviver. A mãe foi-se fragilizando e na cabeça de Emílio tornou-se claro que teria de encontrar, o quanto antes, uma mulher que o amparasse e pudesse ajudá-lo a manter a taberna pela qual Matilde tanto sofrera. 

Encontrou as respostas num jogo da laranjinha. Não lhe sei dizer o bastante sobre isto, jogava-se nos tascos de Lisboa com uma bola de madeira que equipas de três pessoas atiravam a umas tabelas – as tardes de fim-de-semana eram passadas assim, formavam-se grupos e as tabernas jogavam umas contra as outras. 

Num dia da década de 1940, em plena II Guerra Mundial, Emílio e mais dois foram jogar a Caneças… Quando se jogava fora havia sempre petiscos que os da casa arranjavam – nessa divina ocasião, três raparigas levaram carapaus fritos e pastéis de bacalhau para a mesa dos rapazes; o filho de Matilde, assim que a viu, confessou ao amigo Jaime que acabara de antecipar o seu futuro. A Isabel, perguntou-lhe. A filha do dono da tasca, insistiu. Sim, a Isabel. Sim, a filha do dono da tasca, respondeu.

Emílio passou a telefonar para Caneças com o pretexto de saber pela rapaziada. E insistiu em jogar mais vezes fora do que a conta, ali parecia jogar em casa e gastava parte das suas noites a preparar as piadas que levava à namoradinha.
Deu em casamento, claro. Isabel mudou-se para a cozinha de Matilde, sogra que lhe ensinou o que sabia. Porém, o pai continuava a dificultar as coisas… O ambiente tornara-se insuportável e Emílio e Isabel, com uma menina recém-nascida, mudaram-se para Caneças, pensaram que seria para a vida. 

Até que um dia, menos de um ano depois, Matilde surgiu-lhe à frente no desvio do Lumiar, à esquerda da Calçada de Carriche; para ali chorarem os dois. A mãe intimou-o a regressar porque tudo sacrificara em seu nome, ele não tinha o direito de desperdiçar agora o que tanto lhe custara a conquistar. Avisou-o ainda de que não lhe restava muito tempo. 

Regressaram à taberna. Ao mesmo lugar onde Lula da Silva ouviu deliciado, numa mesa perto de um antigo poço, a história que partilho consigo. Talvez a velha Matilde nunca tenha imaginado que, com o tempo, a taberna se transformaria num lugar de prodígios gastronómicos. Talvez mesmo lhe fosse impossível imaginar o que quer que fosse, estava demasiado ocupada em deixar o campo aberto para o filho Emílio e em livrar-se do peso de um marido que não suportaria tornar a ver. 

Emílio fez-lhe a vontade, mas pouco menos de um ano depois, no Verão de 1946, dia 15 de Setembro, Matilde suicidou-se num poço perto da mesa de Lula que, num respeitoso e comovido silêncio, ouviu uma história que jurou ser-lhe impossível esquecer.
O primeiro dia em que abriram as portas após a tragédia, um talhante ofereceu-lhes um bife – o extraordinário é que apenas um cliente lhes entrou pela porta, homem que nunca mais voltariam a ver e que apenas lhes pediu o bife que parecia ter sido encomendado por uma força transcendente. 

Emílio e Isabel viram a ‘aparição’ como um sinal. E nunca mais pararam de crescer. Tasca ficou até 1958, a partir daí restaurante se tornou. O meu preferido em Lisboa. Onde Lula pediu bacalhau à Brás e ouviu o Tio Emílio que, aos 91 anos, é muito mais do que o personagem conhecido por ter acolhido Eusébio quando este chegou (no princípio dos anos 60) com frio, sem amigos e o tenebroso peso da desconfiança. 

Felizmente encontrou o filho de Matilde que, sem precisar de saber quem era, lhe ofereceu uma amizade que perdura com tanta força como a memória a quem brinda todos os dias. Quando lá for brinde com ele. 

IN "SOL"
25/09/12

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