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Por uma pele de boi
1. Na Eneida, de Vergílio,
a fugitiva Dido obtém, dos indígenas norte-africanos, permissão para
tomar posse de toda a terra que conseguir reunir dentro de uma pele de
boi. Dido corta uma pele de boi em tiras muito finas e, com ela, tece um
fio comprido, capaz de envolver um vasto território. Os atónitos
indígenas são obrigados a cumprir a sua palavra e assim nasce a cidade
de Cartago. O mito foi testado, com êxito, pelos navegadores espanhóis,
quando, no final do século XVI, se estabeleceram nas Filipinas. Em
Manila, pedem ao rei muçulmano Solimão que lhes conceda um pedaço de
terra do tamanho de uma pele de boi. A história de Dido repete-se. Mais
tarde, os novos colonos desembaraçar-se-ão do estupefacto Solimão. O
facto foi registado, por académicos chineses, como exemplo da má fé dos
europeus nas relações comerciais. Ainda contemporaneamente, um ditado
chinês alertava contra os riscos nos negócios, devido ao perigo de
"perder o país por uma pele de boi".
A EDP é a pele de boi com que os chineses entraram na nossa
economia, aproveitando a venda forçada do património empresarial do
Estado num prazo curto e os ventos liberais das privatizações
compulsivas. Do ponto de vista empresarial, o empréstimo de mil milhões
de euros, pelo China Development Bank, à EDP, é uma vitória para António
Mexia. Do ponto de vista dos centros estratégicos de decisão,
constata-se que nenhum banco português teria, nesta rodada, capacidade
para encostar a barriga ao balcão. Atenção: os chineses fazem negócios
legítimos e o seu investimento é bem-vindo. Mesmo assim, não deixa de
ser irónico pensar que podemos estar a perder o país por uma pele de
boi.
2. E se fosse uma pele de touro? A associação Prótoiro insiste em
organizar touradas em Viana do Castelo, onde elas, aparentemente, ferem a
sensibilidade de boa parte da população. Foi o que aconteceu, esta
semana, na freguesia da Areosa, o que só não resultou em tumultos,
porque a polícia conseguiu intervir a tempo. Parece-me uma estratégia
muito pouco inteligente, a da Prótoiro. A publicidade aos protestos pode
muito bem potenciar outras ações, encorajando mais ativistas contra a
festa brava. Declaração de interesses (e vão chover cartas): não sendo
aficionado, eu até gosto de touradas. Não pelo espetáculo, de que
aprecio a pega, porque me parece uma luta com probabilidades repartidas,
e onde admiro a coragem do toureio a pé. Mas bocejo durante a lide a
cavalo. Do que gosto mesmo, porém, é da iconografia, do cheiro a gado,
dos grandes espaços da lezíria, da adrenalina - e do papel que a tourada
representa na identidade ibérica, na sua pintura, música e literatura.
Sobretudo por isto, irrita-me o fundamentalismo higienista e ignorante
de muitos ativistas. Concordo com eles no que se refere à barbaridade de
molestar animais para divertimento público. Mas também sei que a
viabilidade económica da criação de touros depende da existência da
economia taurina. Sem touradas, estes nobres bichos serão quase
extintos, confinados a reservas ou, mesmo, ao jardim zoológico. E os
objetivos que os defensores dos animais pretendiam atingir - proteger os
touros - terão sido invertidos. Mesmo assim, não deixa de ser irónico
pensar que, com ou sem touradas, é sempre o touro quem arrisca... a
pele.
IN "VISÃO"
25/08/12
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