A moeda furada
O debate parlamentar sobre o Estado da Nação foi um não-acontecimento. Uma suposta anormalidade absolutamente normal num pequeno país que apenas obedece, respeitosamente, à regra europeia.
Uma semana depois
das expectativas criadas pelo recuo da sra. Merkel no último Conselho
Europeu – e que, apesar da sua crescente popularidade caseira, lhe
valeram severas críticas entre algumas elites alemãs –, a ordem
recompôs-se: o pacto de crescimento proposto pela França desvaneceu-se
na sua dimensão simbólica, enquanto a Espanha e a Itália voltaram a ser
alvo da voracidade dos mercados financeiros (que haviam começado por
acolher com euforia os resultados da cimeira de Bruxelas).
O
sentido da emergência evaporou-se. Não há sintonia entre o tempo
vertiginoso dos mercados e o tempo longo das decisões e construções
políticas. Nada de novo, afinal, na frente europeia, apesar das
esperanças de um pequeno milagre e de uma brecha na muralha.
Passos
Coelho limitou-se a reafirmar a fidelidade religiosa do seu Governo ao
memorando da troika e não esclareceu o que se propunha fazer para
contornar as dificuldades colocadas pelo Tribunal Constitucional ao
Orçamento do Estado do ano que vem. Para já, não haverá aumentos de
impostos nem outras medidas congéneres. Mas ninguém adivinha o futuro e
há sempre circunstâncias imprevisíveis que obrigam a dar o dito por não
dito, como Rajoy acaba de demonstrar em Espanha, com os riscos já
patentes de uma incontrolável explosão social.
O apelo – lançado
por Passos e secundado por Portas – ao maior partido da Oposição para
colaborar na estratégia governamental era um truque estafado para compor
as aparências. Apesar de perseguido pelo fantasma de Sócrates – que os
tenores da maioria não se cansaram, aliás, de agitar durante o debate –,
Seguro aproveitou para tentar distanciar-se da cumplicidade forçada
pelo memorando que o PS subscreveu. Mas a herança socrática é
efectivamente um fardo pesadíssimo que os socialistas não conseguem
atirar para trás das costas, por muitas voltas que queiram dar ao
destino.
Em todo o caso, o álibi Sócrates, à força de ser repetido
até à exaustão, acaba por pôr a nu a extrema vulnerabilidade do Governo
e a sua política de navegação à vista perante o impasse da política de
austeridade.
Não faz sentido, aliás, pretender cativar a
cooperação de Seguro e, ao mesmo tempo, dizer que ele e Sócrates são
duas faces da mesma moeda, conforme declarou no debate de anteontem o
líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro. Pelo contrário, o que se
torna cada vez mais notório são as bizarras semelhanças entre Sócrates e
Passos Coelho.
Não são decerto irmãos gémeos na postura e no
estilo. Mas se Passos é indiscutivelmente mais suave, menos impetuoso e
agressivo do que o seu predecessor – cultivando a imagem de aluno bem
educado que se preza de ser –, também já não dispensa imagens de recorte
trauliteiro, como a da «porcaria no ventilador», utilizada neste último
debate.
A verdade é que Passos não pode exibir a candura e a
higiene de costumes políticos que eram a sua imagem de marca inicial,
quando o Governo imita os piores tiques do clientelismo socrático,
distribuindo cargos de favor entre fiéis e apaniguados ou deixando
enredar-se no burlesco folhetim Relvas (que, na sua vertente ‘doutoral’,
é apenas um remake da engenharia universitária de Sócrates).
Mais
do que isso, porém, é a atitude obstinada de negação da realidade, a
cegueira e a arrogância política (mais dissimulada e sonsa em Passos
Coelho), o que tende a fazer deles gémeos políticos, embora separados à
nascença. E se a outra face da moeda de Sócrates fosse, afinal, Passos
Coelho? Ou se ambos se reduzissem a uma moeda furada?
IN "SOL"
16/07/12
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