Reflexões sobre a lama
Será necessário lembrar que é precisamente no fim da privacidade que se fundam todos os totalitarismos?
A história, de tão repugnante, quase não merece que se escreva mais sobre ela. Mas a verdade é que há, em todo este caso sórdido da alegada armadilha montada ao árbitro José Cardinal, elementos que obrigam a alguma reflexão. E não estou a pensar na corrupção que parece grassar no nosso futebol pátrio e que parece condená-lo, cada vez mais, a ser jogado nos bastidores. Por muito palpitante que seja essa conversa, não é isso que mais me inquieta. A ser verdade, o que verdadeiramente me preocupa é imaginar que uma instituição respeitável como o Sporting possa recorrer - vá lá saber-se com que intuito - a "um exército de seguranças" (alegadamente com ligações a polícias no ativo) para espiar a vida privada de árbitros e jogadores do clube. É bom lembrar que está longe de ser a primeira vez que, amplificando "mitos urbanos" que há muito circulam na sociedade portuguesa, a comunicação social faz referências concretas a traficâncias e ligações perigosas entre forças de segurança da República e grupos económicos ou instituições privadas. E tudo isto nos espaço de poucos meses.
O tema suscita-me, como ficou dito, pelo menos duas curtas reflexões:
1 - Espanta-me, desde logo, no plano político, a falta de sobressalto que mais este caso e, sobretudo, esta aparente vulgarização de práticas de vigilância ilícitas e de inadmissível intromissão na vida privada dos cidadãos parecem suscitar. É verdade que este caminho não começou a ser trilhado agora e que é paralelo a outro percurso - igualmente irresponsável mas, esse sim, politicamente legitimado - que sempre foi justificado com motivos aparentemente louváveis: a luta contra todos os tipos de tráfico, o combate contra o terrorismo, a defesa da saúde ou da segurança alimentar, a mitigação da evasão fiscal ou dos crimes de colarinho branco. Mas serei eu o único a ter lido Orwell (já não peço Annah Arendt)? Será possível que ande toda a gente distraída neste país que ainda a semana passada celebrava (de modo tristonho e enfadado, é certo) a liberdade conquistada em Abril? Será necessário lembrar que é precisamente no fim da privacidade que se fundam todos os totalitarismos? Brinquem com o fogo, brinquem.
2 - E espanta-me, com uma não menos aguda preocupação, e agora no plano cívico, a falta de sobressalto que mais este caso e, sobretudo, esta aparente vulgarização de práticas de vigilância ilícitas e de inadmissível intromissão na vida privada dos cidadãos parecem suscitar. Também aqui é verdade que muito caminho se foi fazendo. E devo dizê-lo, para ser intelectualmente honesto, os media não estão isentos de responsabilidades nesse processo de institucionalização do voyeurismo e de erosão das fronteiras da vida privada. Mas que diabo! Estaremos todos anestesiados? Teremos perdido todas as nossas referências éticas? Será possível que se aceite, com uma indiferença tão doentia quanto perversa, que estes são episódios menores e insusceptíveis de ter quaisquer consequências? Será necessário lembrar que uma sociedade que abdica do seu mais básico direito à indignação é uma sociedade eticamente falida? E que a falência ética de uma sociedade é a antecâmara da sua própria decadência? Brinquem com o fogo, brinquem.
IN "VISÃO"
03/05/12
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