HOJE NO
"PÚBLICO"
Programa de resgate de crianças em abandono escolar está sem verba
Primeiro, não queria falar. Depois, quase não deixava falar os colegas de turma do PIEF (Programa Integrado de Educação e Formação), que tenta resgatar miúdos em abandono escolar ou perto disso. "Disseram: "Venham para a escola que pagamos o passe e o pequeno-almoço." Vai fazer meio ano que estamos aqui e o quê? Não pagam! Não pagam passe, nem pagam pequeno-almoço."
A medida nasceu no seio do Programa para Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil, que em 2009 deu lugar ao Programa para a Inclusão e Cidadania (PIEC). Era gerido entre o Ministério da Educação, o Instituto de Segurança Social e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), tutelados pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social.
Na reestruturação da administração central, o PIEF passou para a alçada directa do Instituto de Segurança Social. A coordenadora nacional e os coordenadores regionais (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) foram dispensados. Instalou-se a incerteza entre alunos e técnicos. Desde Janeiro, não chega dinheiro para assegurar as despesas correntes.
Em Novembro de 2011, a actriz e deputada do Bloco de Esquerda Catarina Martins questionara o Governo sobre a eventual desagregação dos programas. O Governo garantiu o seu seguimento. A deputada visitou uma turma de 6.º ano a funcionar na Escola Secundária Infante D. Henrique, no Porto, onde verificou "um cenário bem diferente". "A situação é insustentável, os alunos perdem esperança na continuidade do programa e as faltas multiplicam-se", diz no requerimento que, entretanto, remeteu aos ministérios da Educação e da Solidariedade Social. "O PIEF irá continuar?"
Questionado pelo PÚBLICO, respondeu por correio electrónico a assessora do conselho directivo: "O Instituto da Segurança Social garante a boa execução do programa até final do corrente ano lectivo, nomeadamente os pagamentos às entidades gestoras." O que se está a passar? "Foi necessário proceder a algumas alterações organizativas, que levaram a um reajustamento no calendário de pagamentos, prevendo-se que as verbas sejam disponibilizadas às entidades gestoras nos próximos dias."
Os alunos sentem-se enganados. E isso mesmo quiseram deixar claro - ainda que sem nomes, já que estão debaixo de olho das equipas de apoio aos tribunais ou comissões de Protecção de Crianças e Jovens. "Meta aí "Oculinhos"", pede o rapaz de 16 anos, que estava em abandono escolar há três, tratando de abafar a risota do que se sentara ao lado. "Deves pensar que tenho vergonha. Vergonha é roubar e ser caço. Eu já roubei, mas nunca fui caço!"
Quem se ria era um rapaz de 17 anos, que se identifica como "Pitbull". Mora num bairro próximo. Vem a pé. Dois colegas têm passe pago pela Câmara de Gondomar, outros dois pelas famílias. O de "Oculinhos" é pago pela mãe: "Se a minha mãe não trabalhasse, não tinha dinheiro. Ficava no bairro, não queria saber. Há alunos que não vêm porque não têm dinheiro para o passe!"
Impossível saber se desistiram por isso ou usaram isso como pretexto. As técnicas têm tirado dinheiro do próprio bolso para pagar o passe de seis alunos. Não os querem perder. Antes, alguns passavam os dias de pijama, entre a mesa, a televisão e o computador. Só vestiam um fato de treino para ir ao café. Foram "caçados" e encaixados ali, com um plano de Educação e Formação.
Direitos retirados em caso de incumprimento
A cara da directora de turma, Odete Esteves, diz tudo: é uma luta tê-los na sala, a aprender Português, Inglês ou Matemática, mas também a interiorizar regras de convivência. "Os alunos com falta de pontualidade e de assiduidade poderão ter de cumprir serviço cívico", lê-se numa cartolina na parede. Sucedem-na outras: "Não é permitido usar bonés, chapéus ou gorros dentro da sala de aula." "Os alunos têm de almoçar na escola com a monitora." "Todos os direitos oferecidos pelo PIEF podem ser retirados no caso de incumprimento destas regras."
A monitora deixou de trazer o pão com manteiga e o pacote de leite achocolatado a meio da manhã, a única coisa que alguns comiam antes do almoço. As visitas de estudo estão reduzidas a orçamento zero. Podia ser pior. Usa materiais da escola nas aulas práticas - operação ambiental, serralharia, electricidade. Outras turmas não o podem fazer - têm culinária e outras actividades que exigem compras. As turmas formam-se à margem das escolas. Só quando se sinaliza um grupo que justifica abrir uma nova turma se procura uma escola que a aceite. Muitas não querem. Temem o pior. Afinal, nada funcionou com aqueles jovens de 14 a 18 anos que é preciso certificar com o primeiro, segundo ou terceiro ciclo.
No ano lectivo 2009-2010, abriram 2130 vagas em 142 turmas: 1964 foram ocupadas. Há um ano, garantia a então coordenadora nacional do PIEC, Fátima Matos, 80% dos jovens abrangidos pelo PIEF tinham iniciado ou mantido o seu percurso de reintegração escolar e social: 43,53% conseguiram aumentar a certificação escolar. No ano seguinte, 188 turmas, 2820 vagas. Este ano, 212 turmas, 3081 alunos.
O que "Pitbull" ou "Oculinhos" gostavam era de estar na mesma escola dos amigos, mas esses já saíram ou andam anos à frente. Na velha escola estariam rodeados de miúdos de 11 ou 12 anos, a idade típica para o 6.º ano. Ali há alunos da sua idade. E uma monitora que não os larga: é mais do que uma mãe para alguns, está dentro da sala, leva-os a almoçar, telefona para os pais se algum desaparece.
A técnica da equipa multidisciplinar, a quem cabe identificar as necessidades, é que deixou de vir às reuniões agendadas na escola. E de ir a casa das famílias dos alunos, como já teria feito a propósito de um rapaz que já não vinha há três semanas e que na passada terça-feira apareceu na sala, como se nada fosse, tornando a sumir-se. Não tem autorização para se deslocar. Os alunos saem de contextos densos, às vezes sufocantes. Podem chegar perturbados porque a polícia esteve em casa e atirou tudo para o chão. Ou armar-se, como "Oculinhos" estava a fazer naquele dia: "O meu advogado é o Carlos Macanjo. Ele tira qualquer um de Custóias. A tropa é minha amiga e está toda cá fora."
* Esta notícia revela quanto à deriva anda este governo em matéria de educação e apoio a adolescentes vindos de meios sociais problemáticos. Começar pelos pais é obrigatório.
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