12/02/2012

JOANA AMARAL DIAS


Crime, fez ela

‘Millennium I: Os Homens que Odeiam as Mulheres’ na adaptação de David Fincher é, sobretudo, o estudo de uma personagem: ‘Lisbeth Salander’

O sucesso de ‘Millennium 1: Os Homens que Odeiam as Mulheres’ (bem como o do livro de Stieg Larsson em que se inspira ou o do filme original sueco) sugerem a sede de anti-heroínas. Mas anti-heroínas mesmo, não umas estampas que também manejam armas e velocidades. Aliás, este filme de David Fincher parece, acima de tudo, o estudo de uma personagem, ‘Lisbeth Salander’.

Ela é rápida, inteligente, talentosa, bruta, violenta, excêntrica. Tudo nela é excessivo. Tudo menos o que mais costumeiramente é hiperbólico nas protagonistas femininas: a beleza. ‘Salander’, magra, meia encurvada, meio corvo, gótico-punk, hacker, motard, tatuada, cabelo curto assimétrico, cara pálida e cheia de piercings faz do corpo um manifesto. Um panfleto de vingança. Mas matar é só um bónus, um extra. Ela é a retaliação de todos os estereótipos femininos, da excisão genital à excisão cerebral, da imagem à cognição.

‘SALANDER’

Claro que a vendetta é também feita. ‘Salander’ assassina os homens que odeiam as mulheres, desde violadores a homicidas sádicos. E fá-lo com mestria e monstruosidade. Por isso é uma anti-heroína e não apenas uma justiceira ou punidora. ‘Salander’ é uma criminosa e o público gosta.

As mulheres perigosas fazem parte da história do cinema. Nos filmes mudos já existiam as vamps, no film noir pairavam as femmes fatales. Mas desde os anos 90 que a hediondez e a violência feminina, que repugna e atrai, passou a ter outra dimensão na tela. Lembram-se de ‘Atracção Fatal’ (Adrian Lyne, 1987), ‘Misery’ (Rob Reiner, 1990) ou ‘Assédio Fatal’ (Yves Simoneau, 1993)? O cinema começou a representar o feminino de uma outra forma, mais agressiva, mais psicopata, mais sanguinária. Para muitos tratou-se de (mais) uma caracterização reaccionária da emancipação da mulher, frequentemente associada à invasão do espaço doméstico, como nas películas citadas.

A verdade é que correspondeu a uma mudança que, de certa forma, parecia ter culminado com ‘Kill Bill’, de Quentin Tarantino. Nada que se compare a ‘Salander’, sem filhos, menos atraente, com mais competências e artes. Nesse sentido, ela significa a transgressão de todas as fronteiras reservadas às mulheres que, não obstante, mantêm fantasias sobre a fuga ao seu lugar no simbólico. A sociopata de ‘Millennium’ consiste, por isso, na condensação de um conflito, de um dilema de papéis e comportamentos, indo muito além dos habituais reflexos das angústias, medos ou fantasias masculinas.


IN "CORREIO DA MANHÃ"
05/02/12

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