22/02/2012

CATALINA PESTANA



O Chico, 
   a morte 
                    e o perdão

Houve tempo em que ela – chamemos-lhe Zulmira – me fascinou. Não a achava bonita, nem simpática, nem empática, mas era completamente urbana.

Urbana e poderosa entre o seu círculo de amigos, onde eu era tolerada, como a suburbana semi-rural que dava um toque neo-realista aos grupos de esquerda.
Os seus amigos veneravam-na. Foi nesse tempo que aprendi o que era uma relação triangular.
Ouvi-a expor na mesma noite tudo o que, na sua perspectiva, era necessário para ter uma vida boa: recolher de cada homem o que ele tivesse de mais inovador, excitante e compensador para as mulheres que nós éramos.
Nunca percebi se ela era feminista ou se tinha caído num caldeirão de poder quando era pequenina.
Esta forma de ser gente era rara na época entre as mulheres. E os homens calavam-se durante muito tempo para a ouvir.

Nunca pertenci ao seu núcleo de amigos, mas às vezes, mercê das circunstâncias, participávamos em tarefas comuns – e aí eu percebia o seu poder real.
Ensinou-me, como quem ensina qualquer sobrinha adolescente, que isso das drogas era um mito. Qualquer copo de bom vinho branco gelado, bebido em boa companhia, produzia o mesmo prazer, e a ressaca era muito menor.
Talvez seja por isso que hoje só gosto de vinho tinto.
Quando participávamos das mesmas lutas eu aceitava o lugar subalterno que me era atribuído, inerente à posição de noviça. Cumpria rigorosamente as suas ordens. Como suburbana, quase rural, sem pedigree, levei mais tempo a crescer no contexto urbano. Sempre a achei mais velha do que eu, no tempo em que ser mais velho dava estatuto.
Percebi, há dias, que tínhamos apenas dois ou três anos de diferença.
Quase no final da ditadura ela foi presa – e a minha admiração por ela aumentou.

FOI MAIS ou menos por essa altura que o Chico, fruto de amor entre o namorado de Zulmira e outra rapariga, se lembrou de ser gente. E o dono do espermatozóide entrou em processo de negação.
Dizia mesmo aos amigos íntimos que faria mais sentido serem eles a perfilhár o bebé – pois seriam eles e elas a ter de o ajudar a crescer.
Eu por direito próprio fazia parte desse grupo.
Na altura Zulmira estava no estrangeiro – e eu esperei que, quando voltasse, ajudasse o seu homem a comportar-se como tal e assumir a paternidade. Tinha poder simbólico para o fazer. Mas não quis.
Perdemo-nos na vida antes de nos termos realmente encontrado.
Cedo percebi que, mesmo com as minhas limitações de origem, sabia claramente de que lado estava no mundo: sempre do lado dos mais frágeis.

No outro dia Zulmira morreu. Morreu com a dignidade formal que a caracterizou durante toda a vida.
Eu fiquei mal. Não por ela ter morrido, mas por perceber, passados tantos anos, que ainda não lhe perdoara o que ela tinha roubado ao Chico.
O Chico hoje é um homem. Tem algumas dificuldades cognitivas, mas tem, sempre teve, todos os afectos completamente no seu lugar.
Tem sentido crítico para analisar o comportamento do pai ao longo da sua vida. Teve mesmo a coragem de lho dizer cara a cara, sem raiva.
Quando soubemos da morte dela, o Chico, solidário de profissão, disse à mãe biológica:
– Tens de ir à Caixa levantar metade da minha pensão para ajudar o pai a pagar o funeral de Zulmira.
– O pai não precisa do teu dinheiro, precisa do teu abraço – respondeu a mãe.
Eu acredito que existe outra forma de vida depois da morte. Esteja Zulmira onde estiver, que descanse em paz.
O Chico é o melhor de nós todos – e já lhe perdoou. 


IN "SOL"
13/02/12

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