03/02/2012

ALBERTO GONÇALVES

ALBERTO GONÇALVES

 

A voz dos donos


No passado dia 16, a RTP transmitiu o Prós e Contras directamente de Luanda. Não vi, mas deve ter sido bonito. Comentários avulsos confirmaram as minhas suspeitas: moderados pela lendária Fátima Campos Ferreira, uma comitiva liderada pelo ministro Relvas e composta pelos pechisbeques empresariais e "culturais" da praxe tagarelou amenamente com a nomenclatura do regime angolano. Ao exercício, a RTP chamou Reencontro. Outros chamaram-lhe coisas piores: manipulação política, sujeição de meios públicos aos apetites do Governo, subserviência às criminosas elites locais, etc.
Pedro Rosa Mendes, escritor e jornalista, foi um dos críticos severos da coisa. Aos microfones da Antena 1, onde assinava uma crónica regular, sublinhou o carácter "nauseante" e "mistificador" (cito) que a coisa exibiu. Pouco depois, viu-se informado de que a sua colaboração com a RDP terminara. Para não tornar a represália ainda mais óbvia, a RDP terminou inclusive com o espaço de opinião diário em que a crónica semanal de Pedro Rosa Mendes se inseria.
O caso teve repercussões. O Bloco de Esquerda questionou Miguel Relvas sobre a matéria, lembrou a recomendação do economista João Duque, que defendeu a utilização dos media estatais sob orientação dos Negócios Estrangeiros, e sugeriu a prática de "um acto de censura inaceitável num estado democrático". Com divertido descaramento, o PS afirmou-se empenhado em apurar se "houve alguma influência da tutela para que a Direcção de Informação ou de Programas tomasse esta posição em relação a uma opinião livre, ou se estas direcções, para fazerem algum frete ao Governo, tomaram esta decisão". E uma senhora Raquel Freire, colega de programa de Pedro Rosa Mendes na Antena 1 e entretanto também airosamente enxotada, perguntou na crónica final: "Para que serve uma rádio pública e um serviço público?" De seguida, colocou duas possibilidades: "Para dar voz às pessoas ou para ser a voz do dono?"
Não sei o que é mais comovente, se a candura dos senhores da RDP, que atribuíram o cancelamento a decisões de gestão anteriores ao texto "angolano" de Pedro Rosa Mendes, se a inocência dos que condenam o dito cancelamento e ignoram, ou fingem ignorar, as circunstâncias que lhe estão subjacentes. A resposta a Raquel Freire é óbvia e responde a tudo o que envolve o serviço público de rádio e de televisão, que nunca tentou ser nada de diferente da obediência e da propaganda. Se tentasse, provavelmente não o conseguiria.
É triste que alguns apenas descobrissem tamanha banalidade em 2012. É trágico que uns tantos hesitem em admitir a descoberta após décadas disto. É previsível que poucos saberão tirar daqui as conclusões devidas, leia-se que a defesa da RTP e da RDP é incompatível com aspirações a uma informação isenta. Não se espera que um único dos políticos tão indignados com o Reencontro quanto ávidos de poder promover "Reencontros" similares mude de opinião. No máximo, talvez o episódio ensine os que genuinamente apreciam a liberdade a evitar futuras colaborações com o "serviço público", que serve a voz do dono e só a voz do dono, seja o dono quem for e queira o público o que quiser. 

Domingo, 22 de Janeiro
A capital europeia de uma certa cultura
Descansem os que viam em risco a posição de Portugal na Europa. O risco sumiu, e não foi graças a empréstimos, troikas, austeridade, impostos, rigor ou fenómenos afins: bastou organizar em Guimarães a Capital Europeia da Cultura para que provássemos ser europeus de pleno direito.
Pelo menos é essa a opinião de Jorge Sampaio, ex-presidente da República e actual presidente do Conselho Geral da Fundação Guimarães 2012, funções que lhe garantiam 14 300 euros mensais e que a demagogia da crise terá posteriormente reduzido para uns dez mil, insuficientes para as despesas correntes de um chefe de Estado na reforma, mas suficientes para o dr. Sampaio afirmar que a cultura não é um desperdício: é um investimento. Já João Serra, presidente da Fundação citada, detentor de salário idêntico e por miraculosa coincidência antigo chefe da Casa Civil do dr. Sampaio, vai mais longe e acrescenta que o evento é um "símbolo contra a negação, o cepticismo e a desistência". O dinheiro leva-nos a dizer frases tão ocas quanto extraordinárias.
Fascinante é quando as frases se dizem de borla. Na abertura do evento, Cavaco Silva desejou que Portugal possa projectar-se de novo a partir de Guimarães, como na fundação da nacionalidade. Pedro Passos Coelho declarou que o valor da cultura não deve ser medido pelo Orçamento do Estado. E Durão Barroso explicou que a cultura e actividades associadas criam emprego, o que, a julgar pelos exemplos acima referidos, dificilmente pode ser negado.
A verdade é que, além de fogo-de-artifício e de uns catalães a empurrar um boneco gigante, a inauguração da Guimarães 2012 apresentou dois espectáculos curiosos. O primeiro consistiu no desfile de clichés destinados a justificar, quase desesperadamente, que os gastos na cultura são por definição sábios, e que a pequena fortuna "investida" por um país falido em irrelevâncias a realizar num concelho particularmente pobre não é um absurdo nem um insulto.
O segundo espectáculo consistiu na enésima exibição do conceito de "cultura" entendida na acepção agrícola, enquanto coisa que se "incentiva", "estimula" e "impulsiona". Por pudor, ninguém reparou que na extremidade correcta do incentivo, do estímulo e do impulso está somente um punhado de beneficiários, e que na extremidade errada estão milhões de cidadãos, os quais não puderam dizer nada sobre Guimarães 2012 e ainda por cima a pagaram. 

Segunda-feira, 23 de Janeiro
Os pequenos contribuintes
Onde está a coerência? Às vezes, o sumiço de uma única criança provoca intensas investigações policiais, manchetes sucessivas na imprensa e centenas de opiniões públicas do inspector/guionista/sociólogo/autarca Moita Flores. Agora, a notícia de 111 mil crianças sumidas em simultâneo mereceu considerável indiferença geral.
Assim de repente, só o fisco mostra ligar ao assunto, o que se explica pelo facto de a falta dos 111 mil petizes ter sido justamente detectada nas declarações de IRS de 2010 por comparação com as do IRS de 2009. Nestas, os pais incluíam despreocupadamente os filhos para efeitos de redução no imposto. No IRS mais recente, tornou-se obrigatório acrescentar o número de contribuinte de cada filho. Conclusão: os filhos rumaram a parte incerta. Rapto monumental? Êxodo em massa? Acção de um Herodes (ainda mais) épico? Talvez nunca venhamos a saber, já que o caso exige as capacidades dedutivas de um Sherlock Holmes (ou de um Moita Flores) e tudo o que temos é o Estado, que além de se afligir com a paternidade imaginária de muitos cidadãos também se devia afligir com aquilo que, na cabeça desses cidadãos, torna a imaginação legítima. 

Sexta-feira, 27 de Janeiro
Um pensador de gabarito
Saltito entre canais e deparo com João Cravinho a catalogar Carvalho da Silva: "um pensador da questão laboral" e homem de "grande gabarito". Presumindo que o dr. Cravinho fala a sério, trata-se de mais um contributo para a canonização do eterno chefe da CGTP, cuja eternidade expirou esta semana. Comentadores suspeitos e insuspeitos correram a chamar Carvalho da Silva de tudo, excepto do que ele, de facto, foi: o exemplo que trabalhou na mesma empresa durante décadas sem comparecer um único dia ao trabalho; o militante que manteve o sindicalismo singularmente atrelado ao Partido Comunista; o combatente que se bateu como poucos em prol da perpetuação do nosso atraso; o camarada que, no momento em que sai da vida sindical, deixa Portugal com mais 300 mil ou 400 mil desempregados do que no momento em que entrou.
Em 37 anos de democracia, pela qual Carvalho da Silva sempre exibiu escassa admiração, poucos desempenharam papel tão nocivo para o país. Vai agora colaborar com o excelso prof. Boaventura na universidade, o que só por si prova a qualidade desta, e cozinhar uma candidatura à presidência da República, o que só por si prova a qualidade desta.

Abaixo de Carter
Após três anos na Casa Branca, Barack Obama resiste às oscilações da opinião pública internacional, que grosso modo continua a louvá-lo. Por azar, a realidade do seu país não resistiu a Obama, que durante a parte cumprida do mandato afundou os EUA em matéria de desemprego, dívida federal, índice de pobreza e competitividade geral. Em Novembro de 2008, escrevi aqui que Obama dificilmente seria melhor do que Clinton e pior do que Carter. Acertei em cheio na primeira parte da previsão. Cabe aos americanos avaliarem a segunda. No discurso do Estado da União, Obama iniciou a campanha rumo às eleições de Novembro, isto considerando que alguma vez, em três anos de perigosa vacuidade, a interrompeu.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS
29/01/12

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