Amorzade
"Não me tinha passado pela cabeça que é exactamente o que sinto pelos meus amigos, os vivos e aqueles que morreram, ou antes, não morreram, só não puderam vir hoje, logo à noite ou amanhã telefonam e estarão no sítio em que combinámos, sem falta, e a gente a abraçar-se às palmadas nas costas. Porque razão os homens se abraçam sempre às palmadas nas costas?"
O pintor italiano Valerio Adami dedicou-me assim um desenho. Com amorzade e a justeza da expressão surpreendeu-me: não me tinha passado pela cabeça que é exactamente o que sinto pelos meus amigos, os vivos e aqueles que morreram, ou antes, não morreram, só não puderam vir hoje, logo à noite ou amanhã telefonam e estarão no sítio em que combinámos, sem falta, e a gente a abraçar-se às palmadas nas costas. Porque razão os homens se abraçam sempre às palmadas nas costas? Sobretudo se estivemos uns tempos sem nos vermos é um festival de pancadaria cúmplice, acompanhado de palavras ternas tais como
- Meu cabrão
e outras doçuras no género. O Valerio comprou a casa de Paris de Salvador Dalí, frente à igreja do Sacré-Coeur, sempre a entrar pelas janelas, um dos apartamentos mais bonitos que conheço, onde ele mora e pinta. Ele, a mulher e um cão minúsculo, que transporta numa espécie de saco a tiracolo. Lembro-me do último jantar, em que comi sob um espantoso Miró, enorme. Como aquele quadro vivia! Cinzeiros antigos, atarrachados às paredes. O cabelo cor de aço do Valerio, os cantos da boca que, ao sorrir, quase alcançavam as lentes. E o atelier meticulosamente arrumado, grandes quadros ainda incompletos e já com uma precisão formal do caraças. Amorzade, meu cabrão, que palavra. E a igreja quase sentada ao meu colo, a igreja a abraçar-me a mim. Uma outra obra, um óleo do pintor chileno Roberto Matta, que conheci muito bem, esplêndido igualmente. Roberto Matta passou uns tempos aqui, a namorar a poetisa Gabriela Mistral. Na altura em que nos encontrámos vivia com a última mulher, para quem desenhou o anel de noivado, com um pirilau e uma vagina. Apertava-se aquilo e o pirilau entrava. Foi a senhora quem me mostrou as capacidades da obra, orgulhosa. Passados uns anos meteram o Roberto num caixão. Nem sei que idade tinha: oitenta e muitos ou vinte, é a mesma coisa, e a mão mais diligente do universo no que dizia respeito a traseiros femininos. Nunca falávamos de arte, falávamos sei lá de quê. E ríamos. Meu Deus o que me ri com esses dois. O que continuo a rir-me com esses dois. E a angústia que se palpava por baixo da alegria. Isto, de criar, palavra de honra que é muito difícil, mas é a única forma de as dores secretas abrandarem. E então fingimos que não há nada e continua-se. O que custa um livro, o que deve custar um desenho, um simples traço até. Porém é um tormento que equilibra e igualmente, em certas alturas, um júbilo indizível. Felizmente que ando com um livro, numa altura em que a minha relação comigo me tem feito sofrer, por razões que não interessam aos outros. A minha mãe, era eu pequeno
- Nasceste com tudo e nunca estás satisfeito e tem razão, senhora: a minha sede é inextinguível. Pergunto-me se alguma vez descobri, dentro de mim, um oásis de paz. Acho que sim e todavia a inquietação
(sei lá definir o que é)
esporeia-me sempre. Não se preocupem
(quem não se preocuparia, de resto?)
cá vou. Para acabar com Paris numa outra ocasião em que lá estive descobri, quase em ruínas, com a respectiva lápide, a casa do astrónomo e matemático Laplace. Ao publicar o seu famoso tratado acerca do movimento dos planetas Napoleão perguntou-lhe
- E Deus?
ao que ele respondeu
- Sire, não tive necessidade de introduzir essa hipótese.
Porque carga de água me apareceu esta conversa na cabeça? Parece que sou uma cave cheia de coisas misturadas: os vencedores da Volta à França desde antes de eu nascer, Descartes, Espinoza, uma sorveteira avariada, Velasquez, Hawthorne, o meu pai a andar de bicicleta, a serra da Estrela ao fim do dia, o senhor Hernâni, careca, que se punha de cócoras para me cumprimentar
- Não me dás um passou bem, rapaz?
e a minha mão triturada na sua. O senhor Hernâni, imagine-se: perdi-o na infância e continua comigo. Careca, baixo, forte, sempre a cheirar a vinho. Aliás, quando me cruzava com ele, era quase inevitavelmente à porta de uma tasca, de gravata torta e um dos colarinhos para cima. Ao mesmo tempo metia-me medo e as suas patilhas encantavam-me. Uma das coisas que mais desejei ter na vida foram patilhas quando crescesse. Não as tenho. Pensando bem acho que não as tenho porque não cresci. Hei-de crescer qualquer dia, não faço tenções de envelhecer menino, e esmagar, por meu turno, a mão do senhor Hernâni, num passou bem de homem.
IN "VISÂO"
27/07/11
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