O poder e o queijo
A velha senhora está deprimida. Normalmente as depressões nela duram 48 horas. Mas já lá vão oito dias.
No passado fim-de-semana a velha senhora deprimiu. Habitualmente as suas depressões não duram mais do que 48 horas. Costumamos dizer-lhe mesmo que ela é uma «força da natureza». Passa pelos acontecimentos duros e agressivos sem deixar que eles dominem a sua forma risonha de estar no mundo. Tem o hábito de arregaçar as mangas para descobrir o lado bom das coisas.
Hoje continua deprimida e já passaram oito dias.
A causa próxima deste estado de alma foi desencadeada por demasiadas horas frente ao televisor.
Era o primeiro sábado de Sol, 19 de Março - dia em que a Lua também seria vista como aparentemente maior por estar mais próxima da Terra, depois de algumas dezenas de anos.
A velha senhora não gozou o Sol nem se levantou do sofá para espreitar a Lua. Mau sinal.
Depois de algumas insistências, foi abrindo o livro das suas reflexões/emoções que produziam aquele resultado.
Naquele sábado todos os seus canais noticiosos preferidos pareciam transmitir a actividade de ratos amestrados - saltitando entre aquilo que os pobres realizadores consideravam poder garantir maiores audiências.
O comício do CDS em Viseu, onde o presidente, perante o cheiro a queijo do poder, produzia milagres. Os amigos desavindos reconciliavam-se em cena. O chefe dizia para o provável parceiro do jogo ainda por disputar:
- Bem feita, não quiseste brincar comigo quando eu te convidei, agora vais ser obrigado a brincar, e vou ser eu a ditar as regras do jogo.
Os realizadores continuavam a tentar o equilíbrio instável. Sem deixarem terminar a frase de quem falava, mudavam o contexto e mudavam os protagonistas.
No Porto, o senhor primeiro-ministro, vestido de secretário geral do PS, usava toda a sua capacidade oratória para convencer os seus de que, embora a carta tivesse a data de 10 de Março, só tinha sido enviada a 11 de Março, à hora a que o senhor ministro das Finanças informava os jornalistas das medidas contidas no PEC 4.
A velha senhora limpou muito bem os óculos porque começava a ver todos os rostos deformados.
Sem transição perceptível, passava-se à Av. da Liberdade, onde a Intersindical, cujos militantes na sua maioria não têm fé, tinham feito um pacto com São Pedro - e procuravam ensinar à Geração à rasca como se organiza uma manifestação a sério.
Eram muitos, sabiam ao que vinham, alinhavam todos à esquerda, e a grande mancha colorida era perfeitamente enquadrada pelo notável serviço de ordem do PCP.
O professor Carvalho da Silva cometeu um erro grave que a velha senhora não entendeu. Fez aprovar uma moção com a convocatória de outra manifestação, para 1 de Abril, tendo por objectivo as reivindicações da juventude precária.
Parecia uma tentativa demasiado óbvia de manter a juventude no redil da CGTP - antes que ela perceba sozinha o que quer e com quem quer fazer o seu caminho. Era como se dissesse: «Vamos lá controlá-los, porque eles eram muitos e deixaram os nossos a gritar sozinhos as palavras de ordem da tribo».
Durante as longas horas em que estas medianas/medíocres lutas pelo poder se digladiavam, os canais noticiavam em rodapé coisas tão insignificantes como a catástrofe atómica, contra a qual os japoneses continuavam a travar uma luta de vida ou de morte; o início da intervenção militar na Líbia, contra a qual o coordenador do Bloco de Esquerda vociferava sozinho; as diatribes do coronel Kadhafi, que já ameaçara enforcar todos os que se lhe opusessem no país e que agora mentia (através do primeiro-ministro) ao secretário-geral das Nações Unidas, dizendo que aceitava o imediato cessar-fogo enquanto reorganizava as tropas para a mortandade final.
A velha senhora, que deve saber donde lhe vem aquela tristeza que não passa ao fim de 48 horas, disse-me: «Deixa. Tenho um amigo padre e outro psiquiatra. Quando eu começar a fazer disparates que provoquem escândalo nesta sociedade, chama aquele que te parecer estar menos deprimido».
Duas gargalhadas e uma bejeca devem ter efeito de antidepressivo.
Eu retorqui: «Acorda, mulher. Pelo menos durante 20 anos não vamos ouvir o Patrick Monteiro de Barros defender o nuclear».
IN "SOL"
28/03/11
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