09/02/2011

VICENTE JORGE SILVA








O fim de um ciclo e o grande vazio

O fenómeno Coelho é expressão de um insustentável mal-estar, um sufoco madeirense que 
extravasou os limites insulares.

Criou-se o hábito de falar em Portugal do fim de ciclos políticos, mas, desta vez, a lição dos factos é iniludível. As eleições presidenciais em Portugal nunca mais serão as mesmas depois do 23 de Janeiro de 2011. A partir das eleições - e da campanha que a precedeu - ficou claramente à vista o esgotamento da confiança dos cidadãos na utilidade da função presidencial, por muito que isso custe ao integrismo de alguns constitucionalistas empedernidos.

A rarefacção política do significado dos resultados eleitorais permitiu, por exemplo, que alguns dos mais óbvios perdedores das eleições - nomeadamente o Partido Socialista e o primeiro-ministro José Sócrates - tivessem prescindido de uma reflexão e passado uma esponja sobre o sucedido.

Os discursos politicamente mais marcantes da noite eleitoral não foram, aliás, os discursos dos candidatos - o de Cavaco, por exemplo, só se distinguiu pelo ressentimento pessoal e a clamorosa pequenez do Presidente reeleito -, mas os dos chefes do partido do Governo e do maior partido da oposição. Ou seja: para além dos poderes virtuais do Presidente da República, o que vai estar em jogo, acima de tudo, será a correlação de forças na arena parlamentar.

Os resultados eleitorais confirmaram, amplamente, essa conclusão. Mas com uma ressalva, decisiva: a crise nacional deixou de poder ser gerida internamente e está cada vez mais condicionada pela força das imposições financeiras e políticas externas (veja-se a reforma estrutural dos despedimentos, avançada um dia depois das eleições).

Ora, nisso, o Presidente da República não conta praticamente para nada - e muito menos um Presidente com o perfil de Cavaco Silva que, como seria previsível, a não ser para os membros da confraria mediática que lhe transportaram o andor, se preocupou antes de mais a dissimular a sua actuação e responsabilidades futuras.

Nunca houve na história das presidenciais uma tão elevada abstenção eleitoral, um score tão expressivo de votos nulos e brancos, a reeleição tão medíocre de um Presidente - com a perda de meio milhão de votos relativamente ao primeiro mandato - e, em particular, uma votação tão significativa no conjunto dos candidatos fora do sistema (como foram os casos de Fernando Nobre e, sobretudo, em termos relativos de fragilidade logística ou extravagância política, de José Manuel Coelho).

A tudo isto é preciso acrescentar, evidentemente, um factor excêntrico: a disfuncionalidade do sistema eleitoral que, por manifesta incúria e falta de previsão, impediu que um número indeterminado de cidadãos tivesse exercido o seu direito de voto. Mas independentemente das consequências - e responsabilidades - políticas que é necessário extrair dessa disfuncionalidade terceiro-mundista, ela acaba por amplificar, no fundo, a apatia e o desencanto de expectativas em torno destas presidenciais, juntando as ausências humanas às falhas técnicas e, dessa forma, sublinhando o vazio.

Em todo o caso, vota-se cada vez mais pela negativa, pela rejeição do que existe, do que por aquilo que o mercado dos candidatos institucionais é capaz de oferecer - e mobilizar positivamente (veja-se a deprimente feira cabisbaixa que foi a festa de vitória de Cavaco Silva). E se essa tendência está muito longe de ser um fenómeno nacional, a verdade é que nunca em Portugal se chegara, como agora, a uma tal indiferença ou rejeição (passiva ou activa) das alternativas propostas pelos grandes aparelhos partidários.

Apadrinhado pelo PS e pelo BE, Alegre tornou-se um disco gasto e só audível pelos devotos de uma nostalgia inerte, tal como Francisco Lopes se viu reduzido à expressão básica da fidelização tribal do voto comunista.

Que um discurso politicamente tão vazio e tão autocentrado nas vaidades pessoais, nos complexos persecutórios ou em incensados créditos humanitários como o de Fernando Nobre possa ter conquistado uma percentagem de votos quase idêntica à que Mário Soares alcançou há cinco anos, constitui um sinal da ritualização sem objecto das eleições presidenciais.

Por outro lado, quando uma candidatura declaradamente caricatural como a de José Manuel Coelho regista um score tão surpreendente, a nível nacional (4,5 por cento) e regional (quase quarenta por cento!), verificamos até que ponto as frustrações com a retórica dominante ou a vontade de ridicularizar os poderes vigentes podem assumir uma expressão inusitada.

Foi isso que alguns comentadores se recusaram a ver, numa atitude de parcialidade, cegueira e sobranceria que se confunde com o desconforto do discurso de Cavaco Silva face às escolhas legítimas - pela positiva ou pela negativa - em democracia.

O fenómeno Coelho não existiria sem a condescendência e a cumplicidade de que o sufocante autoritarismo do regime jardinista madeirense tem beneficiado entre as elites dirigentes nacionais - e por parte do Presidente agora reeleito. Coelho e o PND na Madeira já haviam demonstrado, aliás, que a única forma de contestação eficaz e consequente a esse regime era virar contra ele a imagem caricatural dos seus desmandos, impunidades sistemáticas e linguagem insultuosa e provocatória.

Mais de trinta anos de poder de Alberto João Jardim - um recorde idêntico às de algumas ditaduras árabes agora em risco de colapso - não foram suficientes para que certas inteligências ínclitas da imprensa portuguesa, anestesiadas pelo seu cavaquismo reverencial, tivessem sido capazes de perceber esta evidência elementar.

O fenómeno Coelho tornou-se a expressão de um insustentável mal-estar, um sufoco madeirense que extravasou - a uma escala ainda minoritária, mas já sintomática - os limites insulares. O discurso de Coelho é básico, justiceiro, populista? Pois é, até porque na Madeira não há outro que se faça ouvir. Mas não será também um alerta para o grande vazio político a que estas presidenciais expuseram o país inteiro?

IN "SOL"
31/01/11

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