09/12/2010

PEDRO MARQUES LOPES

PEDRO MARQUES LOPES

Dignidade

1. O primeiro-ministro e a ministra André deram sinais de que iriam voltar atrás no compromisso de subir o salário mínimo. Vieram assim dar razão a algumas associações patronais que argumentavam não conseguir fazer face a esse aumento.
Só se consegue entender a postura dos patrões em função duma qualquer negociação. Talvez relacionada com possíveis alterações na legislação laboral ou outras.
Não tenho qualquer dúvida de que os representantes das empresas sabem que o custo associado a este aumento no salário mínimo é praticamente irrelevante para as suas companhias. Mau era se assim não fosse: uma empresa que não consegue suportar um aumento de 25 euros mensais com um trabalhador que apenas ganha 475 não se manterá por muito tempo no mercado, mesmo uma pequena ou média empresa. Mais, mostrem-me uma boa empresa com muita gente paga a 475 euros por mês e eu estou disposto a dançar todo nu no Rossio.
Fala-se muito, e bem, na necessidade de crescimento económico. O modelo económico suportado em baixas qualificações e em salários de miséria contribuiu, e muito, para que estejamos no actual patamar de desenvolvimento económico.
O modelo que apostava nestas variáveis está mais que esgotado. Todos sabemos que existirão sempre países que conseguirão custos de mão-de-obra mais baixos, sobretudo desde a entrada em força no mercado internacional da China e Índia.
As épocas de crise também têm as suas virtualidades. Servem para que nos interroguemos sobre as questões estruturais da comunidade, sobre o que está mal no nosso aparelho produtivo, sobre os erros em que temos persistido; sobre, por exemplo, as razões do nosso endémico problema de produtividade.
Como é que se pode pedir sacrifícios a quem traz para casa 475 euros? Como é que se pode exigir qualidade de trabalho a quem tem dificuldades imensas em conseguir sequer providenciar alimentação para si próprio? Como é que se pode apelar a um esforço comum numa sociedade em que um gestor duma empresa é pago acima dos padrões europeus e um trabalhador mal consegue sobreviver?
E ainda há quem se mostre espantado ao saber que os trabalhadores portugueses mostram grandes níveis de produtividade no estrangeiro e aqui, segundo uns patetas, são preguiçosos.
E, já que estamos em tempo de reflexão, convinha que o nosso tecido empresarial também se interrogasse se também não é responsável pela baixa produtividade. Se o investimento em formação dos gestores é suficiente, se a organização do trabalho é feita de forma eficiente. É que é muito fácil assacar todos os problemas ao Estado e à sua desastrosa intervenção (que não restem dúvidas de que considero o Estado, a sua burocracia, a péssima legislação laboral, o inqualificável funcionamento dos tribunais um grande, senão o maior, empecilho ao bom funcionamento da economia) e não olhar para os nossos próprios erros.
Para quem ande mais distraído convém lembrar que no nosso país ter emprego não corresponde a não ser pobre. Basta fazer as contas à alimentação, habitação, vestuário e transporte. Uma grande parte das situações de pobreza extrema com que nos deparamos são de gente ou de filhos de pessoas que trabalham oito e mais horas por dia. O facto é que as razões para a existência de salário mínimo como sejam as de, entre outras, dar um mínimo de dignidade a quem trabalha, não atingem esse objectivo.
Não pode haver desenvolvimento sustentado, nem crescimento económico sem o mínimo de justiça social. É também a percepção de equidade, de justiça, da justa repartição de sacrifícios, de equilíbrio na retribuição que faz aumentar a produtividade e contribui para que uma comunidade se desenvolva.
A crise pode tirar-nos muitas coisas, mas não pode servir para nos tirar a dignidade.
2. Numa altura em que tanta gente reclama a herança do património político de Sá Carneiro e, como escrevia Vasco Pulido Valente, não faltam "filósofos que explicam numa prosa arrevesada e solene o verdadeiro pensamento do homem", também quero dar a minha contribuição para este peditório deixando a pergunta: o que pensaria Sá Carneiro ao ver Ramalho Eanes na Comissão de Honra da candidatura de Cavaco Silva?
Pois é, a memória, sempre a memória.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
05/12/10

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