26/11/2010

PAULO PEREIRA




A banda

Ainda há poucos dias recebeu um prémio pelo seu livro "Leite Derramado", mas não é como escritor que assume a marca de génio: é como músico, cantor e compositor que Chico Buarque de Hollanda mais marcas tem deixado para a imortalidade numa carreira longa e assinalada pela contestação aos tempos de ditadura no Brasil. Precisamente "A Banda", tema de 1966, é uma das suas canções mais conhecidas, estando associada a tempos difíceis na sociedade brasileira - a ditadura militar, iniciada em 1964 com o golpe que derrubou o presidente João Goulart a 31 de Março para colocar no poder o marechal Castelo Branco e que só terminou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves. Considerada a canção que revelou um talento excepcional como vencedora do Festival de Música Popular Brasileira, "A Banda"é brilhante pela aparente simplicidade, pela carga metafórica, pelos inteligentes jogos de linguagem que são, afinal, imagem de marca do genial Chico. A letra é, felizmente, património da memória colectiva da Humanidade e vale sempre a pena tê-la presente:

"A Banda"

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor

Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor...

A selecção nacional que entrou na História pelo resultado mais volumoso frente a Espanha (4-0), derrota que poucas vezes aconteceu a campeões do Mundo, neste caso também campeões da Europa, teve algo de génio e de banda. Desde logo, o génio de Ronaldo, castigado de forma ignóbil por uma decisão de arbitragem incompreensível, responsável pela anulação de um dos melhores golos do futebol internacional dos últimos anos. Depois porque não foi só a banda da Armada a actuar para interpretar os hinos - foi a selecção que se tornou banda e interpretou, em campo, um dos melhores hinos ao futebol da sua existência. Moutinho, Meireles e Nani foram símbolos de garra e ambição, Martins foi ganhando passada larga, Postiga e Hugo Almeida materializaram o apetite goleador, Bosingwa à esquerda nunca se incomodou com a sua própria opinião de ser à direita que se sente à vontade, houve oportunidade para estrear Rui Patrício e Paulo Machado, em suma, a equipa foi quase perfeita durante muito tempo.

Voltemos a Chico e ao tema "A Banda" para estabelecer uma ponte com Paulo Bento que, como qualquer outro treinador, há-de perder, porque ninguém é invencível nem super-herói: numa entrevista onde fala sobre a canção, Chico Buarque lembra, entre sorrisos, que foi quase toda composta numa altura em que estava com fome, à espera do almoço. Também a selecção, que vai no terceiro jogo sob o comando do novo seleccionador, goleou a Espanha como se estivesse com fome, neste caso de futebol. Chico mostrou a canção aos seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso, embora começasse por apresentar "Morena dos olhos d'água" e não esperava o sucesso que se lhe seguiu. Paulo Bento começou por centrar atenções na vitória, considerando impensável prever uma goleada destas face a um adversário da dimensão do campeão do Mundo e da Europa. Num caso como no outro, nasceram obras-primas.

IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
18/11/10

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