Restaurantes vão poder dar comida que sobra em vez de a deitarem ao lixo
Iniciativa da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRSP) será lançada a 10 de Dezembro e inclui vales de refeições para carenciados.
O piloto António Costa Pereira bem tentava explicar, mas o sobrinho de nove anos não conseguia entender como se pode desperdiçar o que nem chega a ser servido nas cantinas, restaurantes ou empresas de catering. "A comida está boa?" "Está." "E vai para o lixo?" "Vai." "E as pessoas vão buscá-la ao lixo?" "Vão." "Porquê?" "É a lei." António Costa Pereira também não compreendia. Queria ir à Assembleia da República "puxar as orelhas aos deputados" que tinham aprovado tal lei, forçá-los a mudá-la. Juntou mais de 100 mil assinaturas. Afinal, a lei fora mal interpretada. As sobras podem ser doadas desde que se respeitem regras de higiene. E já está no forno uma rede de solidariedade nacional para ligar quem tem refeições de sobra a quem não tem dinheiro para as comprar.
Chama-se Direito à Alimentação. A iniciativa da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRSP) será lançada a 10 de Dezembro, no Estoril. Autarquias, instituições particulares de solidariedade social (IPSS), fornecedores e estabelecimentos de hotelaria, restauração e bebidas devem inscrever-se no Balcão Único Empresarial - os que aderirem receberão uma placa para colocar à porta.
O secretário-geral da AHRSP, José Manuel Esteves, ouviu o piloto falar e identificou-se com ele. Está preocupado com o empobrecimento da população - e ciente do desperdício que ainda existe. Pelos seus cálculos, só os refeitórios e as cantinas de hospitais, estabelecimentos prisionais, universidades e escolas deitam 35 mil refeições ao lixo todos os dias. Inquieta-o, sobretudo, "a pobreza envergonhada que afecta famílias com crianças".
"Temos sentido de responsabilidade social e mobilizamos [vontades] mais facilmente", acredita. Uma equipa específica registará as adesões e informará os parceiros seguindo um critério de proximidade. As autarquias deverão desempenhar um papel-chave na articulação da rede - até porque, pela natureza dos alimentos, tudo terá de funcionar numa base local, rápida.Oeiras está na linha da frente. António Costa Pereira bateu à porta da câmara e encontrou interlocutor: "Ainda não se sabe quando vai começar o projecto-piloto. A primeira reunião foi a semana passada. A câmara está a fazer o levantamento de necessidades. Para a semana, há reunião com a AHRSP e com a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica]."
O entrave é o transporte. A ASAE não abdica das temperaturas adequadas (ver caixa). Tem-se reunido com a AHRSP para que tudo possa decorrer dentro das exigências legais. À margem de tudo isto, há muito que um número indeterminado de empresários despacha as sobras para quem delas precisa.
"Pessoas desesperadas"
Que não haja equívocos. "Resto" será o que passa pela mesa do cliente e volta para trás. "Sobra" será o prato que nunca saiu da cozinha. "Em certas paróquias, andam pessoas das instituições a recolher sobras, depois do jantar, nos restaurantes", admite o presidente da Caritas, Eugénio Fonseca. Essa comida não é transportada "em frio", como manda a lei. Viaja distâncias curtas antes de ser distribuída ou de entrar em frigoríficos.
Na sua opinião, nenhuma pequena organização consegue respeitar as exigências. E, "nas actuais circunstâncias, seria um contra-senso a ASAE criar problemas". A situação é tão crítica que algumas creches até fazem comida a mais para as crianças levarem para as famílias comerem à noite. "Faço isso e aconselho todos a fazerem. Se quiserem, prendam-me."
"Não podemos aceitar que no século XXI, na Europa, que é o maior espaço económico e de valores como a dignidade humana, haja gente com fome", diz Manuel Lemos, presidente da União de Misericórdias. "Institucionalmente, digo que devemos cumprir a lei. Pessoalmente, digo que situações excepcionais requerem comportamentos excepcionais."
IN "PÚBLICO"
28/11/10
Sem comentários:
Enviar um comentário