23/11/2010

ALBERTO GONÇALVES

ALBERTO GONÇALVES

O desprezo dos desprezíveis

Foi sem dúvida uma óptima ideia organizar a Cimeira da NATO em Lisboa. O Governo pôde banhar-se no alegado "pres- tígio", uma raridade nos tempos que correm. O Estado pôde exercitar a sua natural prepotência e enxotar a populaça da capital da nação. A nação pôde cumprir a vocação de Terceiro Mundo e entrar em stand-by a propósito de meia dúzia de reuniões. As reuniões contaram com a presença mística de Barack Obama, herói das massas. As massas, pelo menos as lisboetas, puderam gozar de uma folga imprevista. A folga distraiu uma economia arruinada. A economia arruinada pôde receber, a benefício do turismo, milhares de "activistas" anti- -NATO, antiglobalização, anti- -EUA, anticapitalismo, anti-semitas, antiguerra, anti-sabão, anti-trabalho, etc.
Porém, é de mim ou a afluência e a actividade dos "activistas" ficaram aquém do esperado? Na quinta-feira, duas dúzias de moços testaram, perante a indiferença da polícia, métodos de "desobediência civil". À hora a que escrevo, na tarde de sábado, uma manifestação desce a Avenida da Liberdade, deprimida por não conseguir enervar as autoridades apesar dos proverbiais gritinhos de "fascistas". Um site informativo refere milhares de participantes. Outro site refere centenas. As fotografias mostram a omnipresença de bandeiras do PCP e do Bloco de Esquerda, o expediente possível para disfarçar a ausência de estrangeiros em quantidade bastante para um protesto decente.
O que explica isto? Um patriota lembra a destruição que os amantes da paz espalharam em Estrasburgo ou em Seattle e não evita a indignação: a rapaziada anti-o-que-lhe-vem-à-cabeça desprezou por completo Portugal e Lisboa. Das duas, uma. Ou essa gente desenvolveu uma compaixão súbita e teve pena do desamparo em que nos encontramos ou apenas nos desprezou, na convicção de que não se estraga o que já está estragado.
Em qualquer dos casos, o caso dá que pensar. Chegou-se a tal ponto que já nem delinquentes nos acham dignos dos pandemónios em que se especializaram. O país desceu tanto que fugiu ao radar do crime ideologicamente motivado, e esta dúbia proeza é o único prestígio de que o eng. Sócrates se deve inequivocamente orgulhar.
Alguns dirão que o controlo das fronteiras impediu a entrada de maior número de "activistas". Na verdade, foram devolvidos uns duzentos e detidos uns vinte. Por tique nervoso, houve "activistas" a queixar-se da "repressão" do Estado português, coisa que o passivo contribuinte caseiro costuma experimentar a sério e em silêncio.
Terça-feira, 16 de Novembro
Um debate desigual
O ministro das Finanças sempre foi homem de vibrantes debates consigo mesmo. Até agora, porém, permitia-nos, e permitia-se, respirar. Se num ano o dr. Teixeira dos Santos assegurava a portentosa saúde das contas públicas, só no ano seguinte se resignava à respectiva derrocada. Se num mês garantia que o défice nem chegaria aos 6%, só no mês seguinte aparecia a reconhecer que afinal a coisa rondava os 9%. Se numa semana jurava a impossibilidade de reduzir a despesa, só na semana seguinte admitia cortar aqui e ali.
Agora, o homem deu em contradizer-se ao fim de poucas horas. De manhã surge no Financial Times a confessar que o "risco" de Portugal recorrer à ajuda internacional é "elevado". De tarde, aparece na agência Reuters a proclamar que o recurso à ajuda internacional "não está iminente" e que não passa de "rumores e especulação".
O tique mantém-se suportável porque, por enquanto, o dr. Teixeira dos Santos reserva um período, mínimo que seja, entre uma afirmação e o seu reverso. Mas nada o impede de, a breve prazo, desatar pura e simplesmente a discutir sozinho em tempo real. Por este andar, não faltará muito para que o vejamos, em conferência de imprensa, a contestar as frases que proferiu dois segundos antes: "É forçoso reconhecer que o pior da crise ainda não chegou." "Não chegou? Claro que chegou. A recuperação económica já é um facto." "Não é, não senhor!" "Ai, isso é que é." "V. Exa. chamou-me mentiroso?" Etc.
Talvez tudo não passe de uma estratégia deliberada para confundir os investidores estrangeiros, embora não se perceba exactamente a quem serve a confusão: de cada vez que o dr. Teixeira dos Santos abre a boca, os juros da dívida sobem uns pontinhos e a famosa "credibilidade" pátria arranja maneira de se afundar mais um bocado. Outra possibilidade é ser o próprio dr. Teixeira dos Santos a andar confuso, hipótese que ele decerto negará com veemência. E confirmará logo depois.
Quinta-feira, 18 de Novembro
O regresso do herói
Se os protestos à Cimeira da Nato tiveram alguma virtude foi a de devolverem Gualter Baptista a uma relativa notoriedade. Se bem se lembram, o sr. Gualter é aquele moço que liderou a destruição de um campo de milho em Silves e, dias depois, se viu destruído por Mário Crespo na SIC Notícias. Nestes três anos e tal, o sr. Gualter sumiu da vista pública, não porque tenha estado na cadeia, onde estranhamente não esteve, mas por opção própria, a recuperar da vergonha. Felizmente, entre a estirpe do sr. Gualter a vergonha é uma benesse descartável e ei-lo de volta a opinar sobre um mundo que não compreende.
Excitado face aos eflúvios contestatários em volta da Cimeira e a greve do dia 24, o sr. Gualter decidiu partilhar na Internet as reflexões que lhe consomem a cabecinha. Escusado dizer que o resultado é uma delícia. Primeiro, num longo e divertido texto, o sr. Gualter procura justificar a acção dos Verde Eufémia (já tinha saudades deste nome), sob o pressuposto de que demolir propriedade privada é um direito mas condenar a demolição é uma "verdadeira inquisição".
Depois, o sr. Gualter lança uns gritos inspirados em Gandhi e na falta de medicação adequada: "Satyagraha contra a NATO e as suas guerras!"; "Satyagraha contra a destruição e apropriação do nosso sistema alimentar por meia dúzia de multinacionais!"; "Satyagraha contra os poderes capitalistas e a sua imprensa, que tentam fazer-nos aceitar que a crise afecta a todos, quando afinal só afecta a alguns!"; "Saiamos às ruas em desobediência contra a cimeira da violência e da guerra! Façamos uma greve geral perturbadora no dia 24! Rejeitemos a apropriação do nosso património agrícola e alimentar!"
Por fim, antes que os paramédicos chegassem com a camisa-de-forças, o sr. Gualter ainda teve tempo para penetrar nas profundezas jurídicas e explicar a obsessão de uma vida: "O crime é uma violação da lei feita às escondidas e com o entendimento de que a lei que se viola é legítima. Na desobediência civil há um acto ilegal, propositado e publicamente anunciado, que intencionalmente viola uma lei que é considerada ilegítima."
Logo, se eu anunciar aqui que pretendo, propositada e intencionalmente, desferir com um repolho transgénico no cocuruto do sr. Gualter, algo que apenas uma lei ilegítima me impede de fazer, isso não é crime: é desobediência civil. E quem sugerir o contrário é inquisidor. Satyagraha para mim também!
Sexta-feira, 19 de Novembro
Morte de cão
No dicionário, "veterinário" é quem trata da saúde aos bichos em sentido literal. Na Universidade de Évora é quem lhes trata da saúde em sentido figurado. Pelo menos esse é o testemunho de alguns alunos e ex-alunos do curso de Medicina Veterinária da referida escola, que garantem ser comum o uso, em conluio com o canil local, de cães saudáveis na prática de, cito o Jornal de Notícias, "esterilizações, castrações, simulações de cesarianas e anestesias". A que se segue o abate.
Não tenho paciência para certos campeões dos "direitos" dos animais, empenhados em berrar por espécies em peso e frequentemente incapazes de recolher um espécime sequer. Eu, que nunca berrei pelas baleias e recolho os cães que posso, não sei o que são os "direitos" dos bichos. Faço, porém, uma vaga ideia do que são os deveres dos homens, e um destes é o de evitar a crueldade sobre as demais criaturas. Discutir se a crueldade pode ser necessária é, além de uma contradição nos termos, um absurdo no caso de Évora. Sob que argumento é necessário aniquilar cachorros em prol da perícia médica que salvará outros cachorros?
A título de ressalva, acrescente-se que toda a história opõe a palavra dos indignados face ao tratamento dos bichos à palavra dos que negam o tratamento indigno dos bichos. Falta a palavra dos bichos, esquiva porque uns já morreram e os restantes são de poucas falas. 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
21/11/10

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