03/09/2010

RICARDO REIS



O que é que você compra quando vai ao médico?


O custo dos empréstimos subiu e a oferta de habitação ainda mais, mas o aumento da população e a migração para o litoral são coisas do passa

O crescimento dos hospitais privados em Portugal tem o mérito de pôr a discussão sobre o sistema de saúde mais próximo da prática e mais distante de abstracções ideológicas. Uma simples visita a um hospital privado deita por terra algumas asneiras que se repetiram durante anos neste debate.

A primeira asneira diz que o sistema privado é menos eficiente do que o público. Quando se comparam pacientes com a mesma doença, tratados ora num hospital público ora num privado, a probabilidade de sobrevivência ou de mazelas futuras é semelhante. Como o privado é mais caro, daí se conclui que o público será mais eficiente. Não faltam estudos aparentemente sofisticados que têm na base esta simples comparação.

O problema desta abordagem é não perceber que quando eu vou ao médico não estou só a comprar a cura para a minha doença. Estou também a comprar um serviço, cuja qualidade depende da atenção do médico, da abertura a visitas de familiares, do conforto do quarto, ou do cuidado de enfermeiros prestáveis e simpáticos.

Para perceber que não são luxos supérfluos, talvez uma analogia ajude. Uma refeição numa cantina escolar fica mais barata do que num restaurante, embora tenha o mesmo valor em calorias e nutrientes. Só um imbecil diria que as cantinas são melhores e mais eficientes. O serviço do empregado de mesa ou o aspecto e sabor da comida não são superficialidades: são parte integrante da refeição que eu compro. Nenhum governante teria a insensatez de propor proibir os restaurantes e obrigar todos a comer em cantinas em prol da eficiência e do bem público; mas na saúde, esta proposta surge a toda a hora.

A semelhança com os restaurantes leva, no entanto, a outra asneira: defender a completa liberdade do mercado. Na saúde, as pessoas não têm informação para distinguir um médico de um charlatão. Logo, abrir um hospital não pode ser tão fácil como abrir um restaurante, e o controlo sobre a qualidade do produto tem de ser muito maior do que o controlo da ASAE.

Do lado da procura, a liberdade de escolha na saúde também tem problemas. Para que o mercado livre possa trazer os seus benefícios, é preciso que o consumidor saiba o preço quando escolhe o serviço. Mas, num tratamento que envolva um internamento prolongado e várias cirurgias, tente ir a meia dúzia de hospitais e peça um orçamento. É tão difícil prever e calcular à partida todos os custos, que a maior parte dos hospitais ou não lhe vão dar o orçamento ou vão falhar redondamente na previsão. A melhor analogia não é ir a um restaurante, mas antes ir a um empreiteiro para restaurar uma casa antiga. Com a diferença crucial de que, no caso da sua saúde, não pode parar as obras a meio e despedir o empreiteiro, e os valores em jogo podem levá-lo num ápice à falência. A saúde não é um bem como outro qualquer.

in "i"
28/08/10

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