Depois de sucessivos atrasos, chegou ontem às mãos dos advogados o esperado acórdão do processo Casa Pia. Com 1760 páginas (menos 30 do que as disponibilizadas no site do Conselho Superior da Magistratura - versão sem os nomes das vítimas - o documento não poupa Carlos Cruz, acusando-o de dar explicações contraditórias. Mas também é duro com os restantes arguidos. Os juízes que analisaram os testemunhos em tribunal afastam a tese de "fantasia criada pelos ex-alunos" defendida por Sá Fernandes, e apoiam o trabalho da PJ. Acusam ainda Manuel Abrantes de proteger Bibi e este de ser um "predador sexual". Afirmam que Ferreira Diniz se aproveitou de ser médico para se aproximar dos menores e que Hugo Marçal não mostrou arrependimento. Também acusam Ritto de se ter aproveitado da pobreza das vítimas.
1 - Ritto aproveitou dificuldade financeira do menor
O antigo embaixador é acusado de ter abordado um menor da Casa Pia que arrumava carros para ajudar a família a pagar as suas despesas
O arguido Jorge Ritto "conhecia a precária situação económica do menor R. N. e da sua família, bem sabendo que tal o tornava especialmente vulnerável", refere o acórdão, salientando que o então diplomata chegou mesmo a dizer ao rapaz que "podia ajudar a sua mãe". Nesse sentido, o arguido dava dinheiro ao menor após consumar com ele práticas sexuais, implicando "coito oral e coito anal", especifica o documento.
Jorge Ritto, que foi embaixador, "agiu de modo voluntário, livre e consciente, querendo satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que tais condutas eram proibidas pela lei penal", lê-se no acórdão.
Acrescenta que no Verão de 1999, "quando abordou e levou R. N., então com 12 anos, para uma residência em Cascais, à presença de vários adultos do sexo masculino, o arguido tinha presente a idade do menor e também sabia que, mercê da sua intervenção, aquele seria sujeito a actos de índole sexual que incluíam coito anal, coito oral e actos de masturbação".
Segundo o mesmo documento, ficou provado que Jorge Ritto abordou R. N., pela primeira vez, em Outubro ou Novembro de 1998, quando o menor e outros dois jovens "arrumavam" carros junto do Aquário Vasco da Gama, no Dafundo, em Algés.
Numa noite de Dezembro de 1998 ou Janeiro de 1999, R. N. "foi com os seus irmãos, com o arguido Jorge Ritto e outro indivíduo jantar a um restaurante chinês em Alcântara. Depois seguiram todos para um andar de um prédio na Alameda D. Afonso Henriques. Jorge Ritto disse a R. N. para o acompanhar a um quarto, pois 'tinha uma coisa que lhe queria mostrar', que os seus irmãos já tinham visto", descreve o acórdão. O documento dá como provado outro encontro semelhante, entre Abril e Julho de 1999, numa casa na Avenida da República.
2 - Integração social de Marçal facilitou ilícitos
Colectivo de juízes ressalva que o advogado de Elvas não mostrou arrependimento e que não teve uma postura "colaborante" durante o julgamento
Tendo por base os relatos das vítimas, o colectivo de juízes considerou que o advogado Hugo Marçal teve um "manifesto aproveitamento das especiais condições de vulnerabilidade das vítimas". Além de ressalvarem que o advogado de Elvas não teve uma postura "colaborante", mas sim "desculpabilizante" ao longo do julgamento, os juízes referiram no acórdão que "a favor do arguido" encontram "apenas a sua integração social e económica". Acrescentaram, porém, que esta condição não foi suficiente para justificar uma "mudança de atitude", mas antes facilitou "os actos ilícitos por si cometidos".
O acórdão refere ainda que Hugo Marçal "não mostrou arrependimento" e especifica quais os "factos provados" que levaram à condenação do advogado por dois crimes de pornografia de menores e um de abuso sexual, crimes cometidos na "casa de Elvas". Nos dois crimes de pornografia de menores, denunciados por duas vítimas diferentes, ficou também provado, segundo o colectivo, a presença de Carlos Cruz.
Nos mesmos factos elencados no acórdão é dado como provado que Marçal alugou a casa a Gertrudes Nunes e que dava dinheiro a Carlos Silvino num envelope.
3 - Contradições de Cruz reforçaram sentença
A juíza do processo Casa Pia, Ana Peres, considerou pouco credíveis as explicações prestadas em tribunal por Carlos Cruz quanto aos registos de chamadas telefónicas que apresentou para refutar as acusações de abuso sexual de que era alvo e pelas quais foi condenado a sete anos de prisão efectiva.
Não obstante "as qualidades" no discurso de Carlos Cruz, pelo "seu conhecido percurso profissional", a juíza recordou que "a contradição (ou aparência de contradição), a inconsistência (ou aparência de inconsistência) pode ocorrer". Esse foi o caso, aponta Ana Peres.
O colectivo de juízes admite que Carlos Cruz "preparou os dados sobre os quais prestou declarações, prestou as suas declarações com possibilidade de recorrer aos elementos documentais que estavam em causa, concretamente registos de tráfego telefónico, pagamento visa/multibanco e registos de Via Verde". E ainda aponta ao ex- -apresentador "um discurso lógico, sem contradições no raciocínio". Ainda assim, as explicações sobre "os cartões de telemóvel que pode ter utilizado (daqueles que lhe eram oferecidos com telemóveis pelas operadoras) ou que deu à sua filha, ou quanto à utilização de cartões no seu telemóvel, que não fosse o que disse ser o seu número usual", não convenceram os juízes.
Estas e outras frases constam do acórdão integral do processo Casa Pia entregue, ontem, às 09.30, com um atraso de mais de uma semana, aos advogados das vítimas e dos arguidos a que o DN teve acesso.
O tom dos três magistrados não é benevolente para o arguido mais mediático: "A seu favor temos apenas a sua integração social, familiar e económica, que o arguido sempre afirmou em julgamento (...) mas que facilitou a prática dos ilícitos por si cometidos".
4 - Juízes concluíram que Abrantes deu "protecção" a "Bibi"
Os juízes indicaram que o ex-provedor adjunto protegeu o ex-motorista, que teve liberdade e impunidade para praticar abusos sexuais com menores casapianos.
No acórdão final, a que a Agência Lusa teve acesso, o colectivo considerou que existiu uma relação "diferente" entre os dois arguidos, ambos condenados por abuso sexual de menores, que levou a concluir que houve "uma situação de 'protecção'" do ex-provedor ao seu funcionário.
Ao longo dos anos em que trabalhou na instituição, Carlos Silvino teve várias "sanções disciplinares e advertências", mas ao mesmo tempo foi progredindo na carreira e sendo promovido, "criando um sentimento de superioridade e impunidade".
Baseando-se nos relatos de várias testemunhas que trabalharam na Casa Pia, os juízes entenderam que, "objectivamente, havia uma especial relação entre o arguido Carlos Silvino e o arguido Manuel Abrantes e vice versa", culminando numa "atitude de protecção" do ex-provedor em relação ao ex-motorista, que "tinha atitudes que demonstravam ascendente e poder face aos demais funcionários".
Além disso, os relatos das testemunhas indicam que, apesar da diferença de estatuto entre os dois, Carlos Silvino tratava às vezes Manuel Abrantes "com arrogância e desrespeito, pondo em causa publicamente a sua autoridade" sem recear "sanção ou recriminação".
Por seu lado, Carlos Silvino pôde "movimentar-se no interior da Casa Pia de Lisboa como quis", destacam os juízes.
Manuel Abrantes demonstrou "tolerância" para com Carlos Silvino e permitiu-lhe "dispor, sem preocupação, do tempo durante o período de serviço ou dos veículos da Casa Pia" para abusar ou permitir que outros arguidos abusassem de alunos.
FONTE: "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
5 - Profissão de médico aproximou Ferreira Diniz das vítimas
Os juízes do processo Casa Pia consideraram que o arguido João Ferreira Diniz utilizou a profissão de médico como fator de aproximação às vítimas de abusos sexuais.
O tribunal entendeu ser censurável cada crime praticado pelo arguido, a juntar ao aproveitamento da sua condição de médico, "fator de algum modo determinante na ausência de qualquer suspeição inicial sobre si por parte das vítimas".
Os juízes consideraram que o arguido cometeu abusos sexuais "com dolo direto" e que a sua postura em julgamento "não foi de todo colaborante, mas antes de negação perante os graves factos" de que era acusado.
6 -Testemunhos e registo de chamadas provaram que Ritto e Ferreira Diniz se conheciam
Testemunhos de um jovem prostituto e de uma empregada doméstica, bem como registos telefónicos, levaram os juízes do processo Casa Pia a concluir que os arguidos Jorge Ritto e Ferreira Diniz se conheciam antes do julgamento, o que ambos sempre negaram.
No acórdão na íntegra entregue hoje aos advogados e a que a agência Lusa teve acesso, os juízes afirmam claramente na secção dedicada aos factos provados que "o arguido Ferreira Diniz conhecia o arguido Jorge Ritto".
Uma das razões para chegarem a esta certeza foi o testemunho de um jovem que admitiu ter mantido uma relação de natureza sexual com o embaixador Jorge Ritto, vivendo na sua casa e viajando inclusivamente algumas vezes para Paris, onde o diplomata estava colocado, ainda antes de fazer 18 anos.
7 - Juízes rejeitaram hipótese de denúncias serem história combinada entre vítimas
O coletivo que julgou o processo Casa Pia rejeitou a hipótese de as denúncias de abusos sexuais serem uma "história" criada pelas vítimas para incriminar os arguidos, argumentando que não existe qualquer história comum a todos.
"Uma situação seria, por exemplo, nove jovens acordarem entre si criar uma história [...] que desde o princípio até ao fim fosse globalmente coincidente e comum a todos", referem os juízes no acórdão entregue hoje aos advogados e a que a Agência Lusa teve acesso.
Esta tese de história inventada - ou "fantasia", como se lhe referiu a defesa do apresentador Carlos Cruz - apresentada pelas defesas levou o tribunal a avaliar depoimentos, cruzando declarações de arguidos, assistentes e testemunhas, "para despistar a possibilidade de tudo isto ter sido uma história criada".
FONTE: "i"
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