A boa distância
A futebolização dos espíritos
Não é difícil antecipar o mês que aí vem. Será um mês em que se vai entrar em completa claustrofobia colectiva, como se vivêssemos numa campânula dentro da qual não se pode falar, conversar ou discutir nada que não seja futebol. Desde que, em 1966, a televisão transmitiu o primeiro Campeonato do Mundo de Futebol, conseguindo então 600 milhões de espectadores, que a excitação à volta deste acontecimento se tem intensificado cada vez mais, impondo um regime emocional de arrebatamento constante, de obsessão focalizada e de fanatismo intermitente, que conduz - como recentemente dizia o autor de uma notável história do futebol, Paul Dietschy - a uma verdadeira futebolização dos espíritos.
São ocasiões que revelam bem a dimensão simultaneamente invasiva e estruturante do desporto na vida contemporânea. Mas são sobretudo ocasiões que convidam a que se procure reflectir, pensando sem preconceitos sobre um tal fenómeno que, em boa medida, vive da renúncia ao pensamento. Retomo por isso três ideias que já tenho exposto, e que continuam a parecer-me centrais. A primeira é que o desporto, na forma que hoje conhecemos, só surge no século XIX, tendo-se desde então tornado num fenómeno só comparável à religião, nomeadamente pelo modo como se impôs como uma referência global incontornável a todos os povos, sexos e idades.
O próprio tempo lhe pertence cada vez mais, o calendário desportivo fixa hoje uma liturgia que condiciona todas as outras temporalidades: políticas, sociais ou escolares. Nada lhe escapa: a sua força tornou-se tal que pretender fazê-lo pela crítica, pela ironia, ou mesmo só pela indiferença se tornou uma atitude logo considerada blasfematória.
A segunda ideia é que desde as últimas décadas do século XX o desporto, e nomeadamente o futebol, ao mesmo tempo que destruía os valores que tradicionalmente se lhe associavam (a camaradagem, o espírito lúdico, o respeito pelo adversário, a valorização pessoal, a abnegação, etc.), passou a consagrar um único valor como valor absoluto, o da performance. Valor que impôs associado a uma implacável lei do mais forte e a uma devastadora lógica mercantilista, de que todos os dias temos lamentáveis exemplos que excedem a mais fértil das imaginações.
Não tenhamos ilusões: o desporto, como riquíssima intermediação entre povos diversos, histórias autónomas, pessoas diferentes, tradições específicas, valores contrastantes, desapareceu. Evaporou-se, na consagração desta sua nova prática massificadora, inteiramente encapsulado num ciclo de euforia/abatimento, que é o ciclo do eterno retorno que anima o actual espírito desportivo.
E, entretanto, o futebol tornou-se num fenómeno inseparável do culto da cupidez, do dinheiro fácil, do sucesso que não olha a meios, da matriz de irresponsabilidade impune, factores que têm conduzido as nossas sociedades aos dilacerantes problemas que hoje vivemos.
É, pois, bom que se pense na sociedade que se está a construir, quando os exemplos que se incensam até ao delírio são os de indivíduos que vivem numa abracadabrante ostentação, como se fossem deuses de um novo circo, gastando dezenas de milhares de euros numa noite de discoteca, exibindo um permanente carrossel de escort girls de luxo, circulando em automóveis de centenas de milhares de euros que estoiram sem um ai. Ao mesmo tempo que, na maior parte dos casos, raramente são capazes de uma iniciativa filantrópica, de um projecto mecenático, de um gesto solidário. Ou, mesmo, quantas vezes, de uma simples frase com sentido…
Por isso, a identificação das selecções e dos seus resultados com qualquer tipo de desígnio nacional não passa, na verdade, de um ritual mais ou menos oportunista e sem qualquer consistência. Que dá, todavia, um bom retrato da estatura daqueles que a promovem, que de resto não enganam ninguém com isso - a não ser, talvez, a si próprios!
Por fim, a terceira ideia é que o desporto condiciona hoje em todo o planeta o imaginário dos povos, impondo-lhes um conjunto uniforme de representações a partir do qual eles concebem quase toda a existência. Como diz um dos melhores intérpretes deste fenómeno, Robert Redeker, é no desporto que se concentram em mais alto grau os factores de uma tal uniformização: consumo desenfreado, fetichismo das marcas, pressão publicitária, culto dos ídolos, submissão aos media, sloganização da linguagem, histerização das multidões, fanatismo da performance. Convergência que torna o desporto, e particularmente o futebol, no catalisador de uma humanidade cada vez mais unidimensional. Não ver isto é não ver nada. Ou melhor, é ver só futebol…
in"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
10/06/11
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