29/05/2010

VASCO GRAÇA MOURA

VASCO GRAÇA MOURA

O arranjo

As escutas telefónicas em Portugal são uma aberração. O que só deveria ser utilizado em casos excepcionais, para prevenção e investigação de crimes da maior gravidade, muito em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos, o tráfico de armas e o tráfico de droga, converteu-se num expediente banal de violação da privacidade, ao serviço das polícias e das magistraturas, e suficientemente miserável para relegar alguns dos processos da PIDE para a categoria de simples brincadeiras de meninos de coro.

Sem prejuízo desta posição de princípio, e se é certo que as escutas se tornaram entretanto um ingrediente imprescindível de uma vida política pouco saudável, não é menos certo que há contextos em que é ainda menos saudável bloquear- -se a sua apreciação. É o que parece estar actualmente a acontecer no Parlamento, não por razões éticas de rejeição liminar de tais métodos, que em geral ali são considerados aceitáveis e válidos, mas por manobras de um oportunismo confrangedor.

Fica-se perplexo ante a maneira como, na Assembleia da República, parece estar em vias de ficar comprometido o trabalho da comissão de inquérito que analisa os meandros do projectado negócio de compra da TVI e os seus contornos mais obscuros no que respeita ao papel do primeiro-ministro e das eventuais mentiras de que ele teria lançado mão nesse suspeitíssimo imbróglio. Comprometido, não por falta de matéria eventualmente probatória quanto ao objecto da indagação mas antes por obstrução a que essa matéria seja analisada e valorada.

Sabendo-se que tal matéria existe e foi enviada ao Parlamento dentro de um quadro de perfeita legalidade quanto à forma e quanto ao conteúdo, não se proceder ao seu exame configura, com toda a probabilidade, um expediente ínvio e uma prepotência intolerável exercida sobre a própria continuidade do processo.

Não se percebe muito bem o que se passa. Não são apresentadas justificações transparentes para a condução dos trabalhos nessa perspectiva. Mas parece que o que se passa é o seguinte: o apuramento da verdade deixa de depender de quaisquer regras e circunstâncias objectivas, ficando antes, ou sendo antes manipulado, ao sabor de conveniências políticas aberrantes ou de outras conveniências ainda mais discutíveis.

Será normal que a comissão de inquérito acabe por não tomar conhecimento de elementos disponibilizados por instâncias judiciais, sendo é certo que essas instâncias garantem a legalidade da obtenção e utilização desses mesmos elementos?

Que singular entendimento estará a ocorrer entre sectores da maioria e sectores da oposição para que seja assim? Acaso haverá afinal alguma entente cordiale entre o Opus Dei, a Maçonaria e outras bizarras capelas da nossa praça, para que se defina nesse plano o que convém que se saiba e o que não convém que se saiba? É para essas afinações e uníssonos sub-reptícios que serve o Parlamento? É para lançar o descrédito sobre si mesmo? E foi para isso e para fazer de nós parvos que se decidiu criar a comissão? Se não é assim, que outra explicação pode aventar-se para a situação anómala de os deputados não ousarem afrontar na comissão de inquérito o conteúdo das escutas enviadas pelos magistrados de Aveiro? O que é que se opõe à descoberta da verdade? O que é que se pretende escamotear da opinião pública?

Mas talvez haja maneiras de perceber melhor o que se passa. Se há 173 escutas disponíveis, legalmente obtidas e legalmente utilizáveis, uma coisa é o assunto TVI e o envolvimento do primeiro-ministro y sus muchachos só se afigurar decorrer de escuta e meia ou coisa assim, o que poderia ser vagamente indiciário de que ele já tinha conhecimento das coisas, mas pouco mais; outra coisa será sabermos quantas vezes é que o assunto é abordado. Quinze? Sessenta e três? Cento e catorze? Cento e cinquenta?Ao menos isso, para se ficar com uma medida mais exacta dos arranjos, piruetas e contorcionismos malabares que vêm agora bloquear a análise de outras fitas, de outros jogos de interesses, de outras manobras comprometedoras.
É por estas e por outras que já dobram os sinos da democracia.

"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
26/05/10

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