07/05/2010

SILVÍA DE OLIVEIRA



Puro instinto maternal

A vida dos nossos filhos dificilmente será melhor que a nossa. Mas para que conste, o compromisso do país não é com as empresas do costume

Não, não é instinto maternal, não há pinga de emoção, é antes uma convicção assente em coisas prosaicas. Mas é inédito. A vida dos nossos filhos dificilmente será melhor que a nossa. Pode dizer-se que sempre foi assim, que os nossos pais e avós também sentiram o mesmo, que não há como escapar ao medo e à incerteza em relação ao futuro. Mas não, infelizmente, os dados existentes são suficientes para antecipar um futuro seguramente diferente e muito mais difícil. Como disse tão bem o historiador Rui Ramos, em entrevista ao i publicada no sábado: "Quem é jovem em Portugal hoje em dia, quem tiver 15, 18 ou 19 anos, a sensação que terá é que chegou no fim da festa e vê os mais velhos a guardar as garrafas de champanhe e os restos dos cocktails e dos bolos, há fitas pelo chão, mas a festa acabou." "E ainda por cima, não é só limpar os restos da festa, como pagar a festa, que é outra coisa que nós lhes reservámos. A conta da festa das gerações anteriores. Têm de pagar a nossa saúde, as nossas pensões..." Isso tudo, os nossos excessos, os que já fizemos - não há volta a dar - e os que viermos a fazer. Para isso, poderemos contar com os nossos filhos, sim, porque nós já não temos um tostão, só dívidas, e continuamos a viver do crédito para pagar as contas do dia-a-dia. Bela prenda, cheia de obrigações e menos direitos. O mais fácil é dizer que é o costume, são sempre os mesmos!, acusar os críticos de pessimistas, de não fazerem mais nada além de dizerem mal, esquecer e continuar que os dias não são nada fáceis, já bem bastam os jornalistas que nunca encontram nada de positivo no país, que cansativos!, em vez de ajudar, não, parece que gostam de enterrar mais um bocadinho, e as notícias, que maçada!, desgraça atrás de desgraça... É, aliás, por causa desta espécie, não há meio de a extinguir - morre tanta gente boa todos os dias... -, que, passadas décadas de debate e discussão, estudo para cá, estudo para lá, ainda aqui estamos e o país não tem Alta Velocidade. E são esses, os mesmos de sempre, os incapazes de entender a aposta nas infra-estruturas que aproximam Portugal do centro do universo, a ferramenta para aumentar a nossa competitividade, são estes, esses mesmos, que querem agora, mais uma vez, barrar o indispensável TGV. E quem diz o comboio, diz a terceira travessia sobre o Tejo ou o novo aeroporto de Lisboa. E a chatice é que não param de crescer e de incomodar o governo, que tem o trabalho todo feito, estudos de perder a conta, um orçamento, um PEC e, nunca mas nunca esquecer, uma inefável determinação e uma absoluta certeza de que há obras que não são daquelas de suspender ou adiar, quando muito podem ser reavaliadas desde que tudo fique na mesma, pronto a avançar. Um troço, uma auto-estrada, ainda vá lá, agora um TGV, por amor de Deus! Será que esses, os tais, não entendem que foram assumidos compromissos com empresas - sim, é verdade, as do costume - e que a palavra ainda tem valor nos dias que correm? Enfim, muito mais teria para dizer, do fundo do coração, uma mãe que não percebe nada de ferrovias, mas que tem todas as dúvidas sobre a definição de prioridades do governo, que gostaria de perceber como é que se quer fazer meio mundo acreditar que sem estes investimentos o país pára, como é que, assim, alguma vez se fará de Portugal um país exportador - não são as exportações, a salvação da economia? - e que tem uma única certeza: não temos dinheiro, logo, não precisamos de TGV, NAL e TTT. Quem sabe mais tarde, depois de se começar a tratar bem as famílias. Afinal, o compromisso do país não é com as empresas do costume.
IN JORNAL "i" 05/05/10

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