05/04/2010

FERNANDA PALMA


Sentir o Direito

O mito da culpa

No discurso mediático, a culpa pelo crime surge sempre associada à condenação. Esta constitui um sinal que marca os autores materiais e também, em muitos casos, as instituições de onde eles provêm (sobretudo quando estas não os denunciam). Mas o discurso da culpa nunca se confronta com o dia seguinte: visa, apenas, segregar os culpados, separando-os do universo dos inocentes.

A culpa é um símbolo que alivia a nossa própria responsabilidade, aparecendo invariavelmente como "culpa dos outros". Porém, tal processo de projecção nem sempre é possível. Em relação a crimes tão graves como os do nazismo, que atingem o sentido do humano, pode falar-se de uma culpa geral, feita de silêncios cúmplices e autorizações tácitas, como assinalou corajosamente Karl Jaspers.

Paul Ricoeur observa que estes processos de transferência da culpa dos indivíduos para a sociedade têm uma expressão intensa no simbolismo bíblico. No Antigo Testamento, a culpa individual era absorvida pela culpa colectiva – da tribo –, que a todos contaminava. Mas nos Evangelhos a culpa já é associada à perspectiva de que a salvação depende do mérito de cada pessoa e não do grupo.

Com efeito, na tradição cristã, a culpa individual assume uma nova lógica, identificada com precisão por autores como Paul Ricoeur ou Jean Nabert (no ‘Essai sur le Mal’). Já não é uma culpa-condenação, que apenas exclui e faz afundar toda a comunidade. Torna-se um ritual de purificação para uma nova etapa, em que o culpado se confronta com o erro e, repudiando-o, se desliga dele em definitivo.

As concepções penais sobre a culpa devem ser entendidas à luz destes símbolos que, como diz Ricoeur, revelam um pensamento humano enraizado na tradição colectiva e nos nossos quadros mentais. Na sabedoria dos autores que cito, o mito cristão da culpa não é o fim mas antes um começo – a passagem para uma nova fase. Paradoxalmente, será até, no dizer de Leibniz, uma "culpa feliz".

Hoje, a culpa dos outros serve mais para aliviar a nossa culpa do que para resolver seja o que for. Mas assumir a culpa dos outros em vez de projectar a nossa culpa nos outros constitui a lição do sacrifício pascal. O sacrifício cristão de carregar a culpa alheia redime toda a humanidade. À lógica da condenação de todos pela mancha de um, sucede a lógica da salvação de todos pela expiação de um.

No Direito, a culpa só pode ser um meio de recuperação. Por isso, tal como em outras Páscoas, proponho que, ao punir quem comete crimes, assumamos a obrigação de o tentar reinserir. Por razões morais ou até por uma questão de defesa da sociedade, essa é a única alternativa às soluções radicais de eliminação ou exclusão perpétua, que nos tornam indignos e nos aproximam dos próprios criminosos.

Professora Catedrática de Direito Penal.

in "CORREIO DA MANHÃ"
04/04/10

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