15/11/2009

MARTIM AVILEZ FIGUEIREDO

Faces ocultas

por Martim Avillez Figueiredo, Publicado em 14 de Novembro de 2009

Um país de gente pobre é um país que se corrompe. Um país de políticos fracos é um país que se corrompe. Sim, esta é a história de Portugal

O ministro Vieira da Silva considera que estas escutas a Armando Vara e ao primeiro- -ministro José Sócrates são "pura espionagem política". Ouvido assim lembra outra triste história, essa que envolveu Cavaco Silva. Com uma diferença: o presidente queixava-se de ser ouvido por aqueles que agora se lamentam das escutas. A história é triste.

Já se escreveu aqui que os polícias usam os jornais para fazer transpirar as suas investigações porque sentem que os juízes as deixam cair nos tribunais. Já se sublinhou também que os juízes sentem que as suas decisões são travadas pelo poder político. E recordou-se igualmente que os governantes têm aqui o papel mais importante - é por eles que passa qualquer reforma do sistema judicial. Finalmente, lembrou-se a tese do inglês Timothy Besley, para quem a ausência de agentes políticos principais, como lhes chama, explica boa parte das crises do mundo moderno. Que falta explicar então? Pouco.

Sobra aquilo que é o senso comum, a ideia de que este país se corrompeu. Na "História de Portugal" que a Esfera dos Livros publicou, Rui Ramos, o coordenador, tomou a sábia decisão de iniciar as 900 páginas deste trabalho espantoso com a base da história deste país - um povo habituado a fazer pouco com o seu próprio dinheiro, e muito com o dinheiro de todos. Ainda há dias se discutia a determinação do infante D. Henrique ao lançar - por sua iniciativa, privada - a campanha dos descobrimentos portugueses. Mas o dinheiro dessa empresa privada era da coroa, como o eram os marinheiros que guiavam as caravelas. As anedotas das cunhas, essa outra terrível tendência para sublinhar, sempre, a ideia de que todos quantos vêm de baixo para cima só aí chegam porque recebem empurrões do alto, não é brincadeira de salão: é a história de um país que não se conta apenas nos livros.

Esse país, revelou-se também aqui, é maioritariamente composto por 18% de pobres muito pobres (vivem com 400 euros por mês e por família), quase 20% a quem chamam classe média (vivem com pouco mais de 1600 euros por mês e por família) e as 160 mil famílias consideradas ricas - que vivem com cerca de 3000 euros por mês. Isto dá quase metade da população - os 48% dos portugueses que, segundo Bruxelas, não têm 1000 euros para fazer face a uma despesa extraordinária. Não é estranho imaginar que, no meio de tanta gente necessitada, a mesma necessidade aguce o engenho.

Manuel Godinho pode ser a ponta de um maior novelo, ou não representar mais - como se tem ouvido dizer - que a pequena corrupção. Mas Manuel Godinho revela o país. Diz-se que ele dormia debaixo de camionetas. Não para o desculpar, mas como se isso ajudasse a olhar melhor a realidade. Que miséria: a realidade está à vista.

Quando o ministro da Economia, e depois o primeiro- -ministro, explicam que tudo isto são manobras de espionagem, é deste país que se fala - o tal de gente que há muito não tem dinheiro para viver e há muito procura formas de se safar. Até agora eram faces ocultas.

in "JORNAL i"

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