12/09/2020

JOANA SANTOS SILVA

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Covid, cooties e Sibéria social 

Se o Covid apresentou uma oportunidade de repensar e investir na saúde também deveria ter sido aproveitado para repensar e investir na educação. 

A minha infância foi passada no Canadá. E no recreio da escola, quando queríamos sinalizar que uma criança era menos cool, gritávamos alto e a bom som: “Ele/ela tem “cooties”!” (Nota: Se virem com cuidado existem muitas referências em séries televisivas e filmes cinematográficos a esta doença amplamente espalhada na sociedade norte-americana.)

Esta doença imaginária infectocontagiosa era a coisa mais temida pelas crianças do ensino básico e do 2.º ciclo. Não era temida pelos seus efeitos nefastos na nossa saúde física (pois estes eram inexistentes) mas porque ser marcado por ter “cooties” era o equivalente a viver na Sibéria social. A Sibéria social é um sítio frio e sem amigos, em que uma pessoa se vê isolada do grupo. Em suma, o pior destino imaginável para uma criança de 10-11 anos de idade.

Na próxima semana, reabrimos a grande maioria das escolas do nosso país. Passados meses sem interação social presencial entre amigos e professores, muitas crianças vivem ansiosamente expectantes para regressar à escola.

Não tenho dúvidas sobre a importância da escola presencial. Enquanto professora universitária lecionei sessões online durante o período de desconfinamento, mas a experiência fica sempre aquém da experiência presencial. A aprendizagem está ancorada num contrato socio-emocional. Nós aprendemos com os nossos professores, mas aprendemos muito com os nossos pares. Estarmos numa situação de isolamento tem um impacto negativo na nossa capacidade de aprendizagem. A título de exemplo, fala-se muito no tamanho ideal de uma turma. Existe uma preposição para acreditar que uma turma mais pequena levará a melhor resultados na educação das crianças, mas esta ideia não passa de mais um mito urbano. Um dos maiores especialistas da área, o economista e professor em Stanford, Eric Hanushek, tem demonstrado repetidamente a inefectividade da alocação de recursos no ensino e em particular da diminuição do tamanho da turma. Foi efetuada uma meta-análise de vários países e no caso de Portugal, à semelhança da Coreia do Sul, Rússia, Eslovénia, República Checa e Canadá, a diminuição do tamanho da turma não se traduz numa melhoria na aprendizagem da matemática ou ciência.

Quando os professores são inquiridos, a maioria diz que a turma ideal teria 18 alunos, sendo que em 2.º lugar do pódio a turma ideal teria 24 crianças. Estes números são excelentes para montar dinâmicas de 2, 3 ou 6. São suficientemente grandes para ter massa crítica, gerar debate e ninguém se sentir vulnerável, mas suficientemente pequenos para todos terem atenção. Da minha experiência a lecionar para executivos, o meu número mágico é 20-24. Acima de 30, perdemos sinergias e a capacidade de desenvolver experiências mais ricas, 12 parece um jantar de amigos e 6 ou menos não traz diversidade.

A educação é mais eficaz quando temos mais perspetivas em sala e quando temos diversas opiniões a serem partilhadas e ouvidas. Numa turma muito pequena, os introvertidos tendem a falar ainda menos pois sentem-se ainda mais expostos e os extrovertidos também falam menos porque não existe motivação suficiente (a plateia é demasiada pequena para o artista). Não devemos olhar para os colegas da turma como a concorrência dos nossos filhos, mas antes como parceiros na sua educação.

Por outro lado, as escolas são elevadores sociais e são fundamentais para a mobilidade social e contribuem para minimizar a iniquidade social. O economista Alan Krueger criou a Grande Curva Gatsby. Inspirado na personagem Jay Gatsby no romance de F. Scott Fitzgerlad, esta curva demonstra a relação entre a desigualdade económica e a mobilidade económica. Analisando países, quanto mais acima estiver no traçado da curva, um cidadão desse país que nasça no estrato socioeconómico baixo dificilmente conseguirá sair desse estrato. Por outras palavras, quanto maior o valor na Grande Curva Gatsby maior a iniquidade social. Em Portugal, o nosso valor nesta curva é alto e isso não é bom. De acordo com o estudo do World Economic Forum publicado em fevereiro de 2020, em Portugal, uma criança que nasça numa família de classe baixa (10% mais baixos da distribuição de rendimentos) levará 5 gerações para chegar à classe média. 5 gerações equivalem a 100 – 150 anos de tempo linear.

Este estudo reflete a economia pré-Covid. É prévio à maior disrupção económica das últimas 5 gerações. E se a última crise nos ensinou algo foi que a retoma de Portugal tende a ser mais lenta do que os seus países vizinhos.

A escola capacita as crianças com competências que são fundamentais para ingressarem no mundo de trabalho. Até à data, a conclusão de maiores níveis de ensino está positivamente relacionada com o nível de rendimento. Quando as crianças não estão na escola, elas perdem parte da aprendizagem adquirida. Não foi preciso o confinamento para ter conclusões sobre este efeito. Há anos que é conhecido um efeito designado “Summer Slide” ou Perda de Aprendizagem de Verão. Durante o período das férias escolares, as crianças ou não progridem academicamente ou chegam a perder competências. Esta perda é mais acentuada na matemática do que na leitura. Há crianças que chegam a perder 3 meses de aprendizagem acumulada. Daí a fase das revisões na retoma do ano letivo, pois todos os professores têm consciência deste efeito. A questão é que os alunos de contextos económicos desfavorecidos são mais afetados do que os seus pares. A diferença dos “alunos ricos” e “alunos pobres” é acentuada cada ano durante o verão. Imaginem o impacto de 6 meses de afastamento presencial das escolas. Enquanto país, temos muito para fazer na área de equidade social e tirar as crianças das escolas só vai exacerbar um problema sistémico da nossa sociedade.

A discussão da retoma ao ensino presencial tem focado principalmente em máscaras, álcool gel e medições de temperatura. Enquanto mãe (cujo filho já regressou à escola na semana passada) entendo perfeitamente a nossa ansiedade coletiva face à segurança dos nossos filhos, mas não podemos deixá-los na sibéria social para sempre. Respeitando todos os cuidados, temos de regressar, para o bem deles e para o bem da sociedade.

Se o Covid apresentou uma oportunidade de repensar e investir na saúde também deveria ter sido aproveitado para repensar e investir na educação. A forma mais eficaz de garantir uma sociedade justa e equitativa é garantir o acesso ao ensino e o subsequente desenvolvimento de competências necessárias para a integração na economia e na sociedade. Não partimos todos do mesmo ponto de partida e neste país, grande parte das nossas crianças já partem em desvantagem. Temos de refletir enquanto sociedade como mitigar essa situação sendo certo que não haverá uma panaceia para um desafio desta dimensão, o regresso ao ensino presencial, o regresso à interação com pares, o regresso às brincadeiras, e claro, o regresso ao barulho, são pedras basilares do desenvolvimento da nossa sociedade. As crianças querem e precisam de voltar para os seus grupos sociais e aprender e crescer.

Pois ninguém quer ter “cooties”…

*Coordenadora de programas de Formação de Executivos em marketing e gestão farmacêutica da Católica Lisbon School of Business

IN "OBSERVADOR" - 11/09/20

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