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A criação do Mundo
A 75.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas iniciou ontem os seus trabalhos sem a pompa e glória habituais devido às restrições impostas pela pandemia, mas com uma agenda reformadora ambiciosa que bem precisávamos que viesse a ser, finalmente, cumprida!
Nessa manhã, em Bruxelas, o Parlamento Europeu ouvia o discurso do "Estado da União" da presidente da Comissão Europeia com propostas inéditas de reforço da coesão e solidariedade internas aprovadas pelos governos nacionais, no Conselho Europeu, mas que correm o risco de naufragar precocemente no processo obrigatório de ratificação parlamentar por cada um dos estados-membros... Na última página do jornal "Público", no mesmo dia, Rui Tavares assinava uma crónica fascinante onde cruza a etimologia latina da palavra "mundo" com as prédicas teológicas de Santo Agostinho, o bispo de Hipona, com a mitologia pagã e com o Genesis das Escrituras... onde o Mundo se define como uma invenção harmoniosa, limpa e justa, por oposição "à desordem e imundície do caos".
Contando com o patrocínio providencial de Donald Trump e do seu genro Kushner, alguns países árabes, na véspera, assinaram em Washington, com o sinistro Benjamin Netanyahu, presidente do Estado de Israel, um pacto "sagrado" contra os hereges xiitas da República do Irão! Quanto à hipocrisia destas guerras religiosas, a verdade é que nada acrescentam às histórias cruéis das cruzadas, da reconquista, da reforma e contrarreforma dos cristãos europeus. Porém, na vizinhança da Europa, ficou assim garantida por tempo indeterminado a continuidade da guerra atroz que incendeia há muitos séculos as margens do mar Mediterrâneo e que tem no povo da Palestina a sua vítima predileta. Mas é esse o preço que Ursula von der Leyen e os europeus são "convidados" a pagar pela importância prevalecente do oceano Pacífico na disputa pela hegemonia mundial entre os EUA e a China.
Indispensável durante a Guerra Fria, o papel da Ordem Jurídica Internacional foi declinando ao longo das décadas seguintes, vítima de pulsões ingénuas de legitimação do uso da força - a bem da democracia e da defesa dos direitos humanos - e da alegada premência da luta contra a ameaça terrorista. A Europa é uma peça decisiva na conformação de um novo sistema multilateral que preserve a força jurídica do Direito Internacional Público num quadro organizativo que reclama para o sistema das Nações Unidas, novas estruturas, poderes reforçados e regras severas de transparência e prestação de contas que compensem o seu inevitável défice democrático. A Europa tem a responsabilidade irrenunciável de assumir este combate em nome do Estado de direito, dos direitos humanos e da solidariedade entre os povos, valores nucleares que são parte integrante do seu património civilizacional.
* Deputado e professor de Direito Constitucional
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 17/09/20.
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