Uma ideia deslumbra PS e PSD: o Projecto Tejo – uma espécie de Alqueva para o Vale do Tejo e Oeste que prevê a construção de barragens, açudes e outras barreiras ao longo do curso do rio e afluentes
Os muitos milhões de euros prometidos pelo novo fundo de recuperação europeu espevitaram desejos adormecidos, até há pouco tidos como irrealistas, de PS e PSD. Numa questão de semanas, jorraram novas velhas ideias extrativistas: mineração em mar profundo, expansão aeroportuária e até o eufemístico “green mining” em áreas protegidas. Nem todas estas ideias serão consensuais para PS e PSD, mas há uma que deslumbra os dois: o Projeto Tejo – uma espécie de Alqueva para o Vale do Tejo e Oeste que prevê a construção de barragens, açudes e outras barreiras ao longo do curso do rio e afluentes.
Numa entrevista recente, a Ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, revelou o lançamento de um concurso público para a escolha de uma equipa que estude “o que é necessário fazer no Tejo”, enfatizando que o regadio é sua prioridade. O Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Regional, Nuno Russo, mesmo sem conhecer resultados e conclusões de qualquer estudo, acredita que “o Projeto Tejo será uma realidade no futuro”. Do lado do PSD, o deputado Duarte Marques nem precisa de estudos porque é o “interesse nacional que está em causa”, sendo impensável “deixar correr tudo para o mar”.
Hoje precisamos mais do que nunca de uma transição ecológica na agricultura, ao invés de mais monocultura intensiva assente na delapidação e no uso insustentável da água, dos solos e da biodiversidade, cujas consequências se refletem na atual crise climática e ambiental. A agricultura terá de ser mais resiliente, baseada na produção diversificada, nas rotações e consociações, tirando proveito dos processos ecológicos. Para tal deve reduzir os consumos energéticos, adubos e pesticidas, o que poderá ser alcançado através de técnicas mais eficientes e precisas. Sobretudo, precisamos do que muitos agricultores e agricultoras já fazem: o uso racional da água, que passa também pela reutilização de água residuais. A atual crise climática e ambiental não se coaduna com a megalomania extrativista e com a destruição dos sistemas de vida que nos sustentam.
O trabalho com direitos, qualificado e estável é uma condição para que a transição ecológica na agricultura seja uma realidade. A produção em monocultura intensiva, de regadio, está tantas vezes assente em mão de obra precária, mal paga e, por vezes, até escrava. Os exemplos deste modo de trabalho desumano estão infelizmente à vista de todos: basta visitar as zonas de contentores no perímetro de rega do Mira, nos concelhos de Odemira e Aljezur, onde vivem empilhados centenas de trabalhadores migrantes, em condições insalubres. Este é um modelo que não podemos replicar noutros pontos do país e que urge erradicar.
O Projeto Tejo choca ainda com os objetivos para o ambiente e agricultura da atual liderança da Comissão Europeia, apoiada por PS e PSD. A Comissão compromete-se, e bem, a renaturalizar 25 mil quilómetros de rios até 2030, através da remoção de barragens e açudes; PS e PSD preferem um Tejo artificializado, numa sucessão de charcas. A Comissão propõe que 25% das terras aráveis seja dedicada à agricultura biológica; PS e PSD escolhem o regadio para monocultura intensiva e superintensiva. A Comissão recomenda a redução do uso de pesticidas para metade; PS e PSD optam pela promoção de práticas agrícolas conhecidas por contaminar aquíferos e águas superficiais.
Muitos dos impactes ambientais que o Projeto Tejo provocaria podem ser antevistos. Com o Alqueva foi destruída uma ampla extensão de galerias ripícolas, deterioradas as condições ecológicas para espécies ameaçadas e endemismos locais, interrompidos corredores ecológicos e degradados solos. Seriam necessários estudos para conhecer em detalhe todos os impactes, mas é plausível considerar que seriam desta tipologia os danos provocados pelo Projeto Tejo, cuja área de regadio está projetada para quase o dobro da área do Alqueva.
O rio Tejo e os seus afluentes Pônsul e Sever sofrem hoje efeitos graves da má gestão dos Governos português e espanhol que mesmo ao abrigo da Convenção de Albufeira não garantem caudais mínimos diários. Quem tem mandado é a multinacional hidroelétrica Iberdrola que descarrega água das barragens para o lado português quando é mais lucrativo produzir energia, não garantindo a integridade ecológica e as necessidades hídricas diárias do outro lado da fronteira. Foi com choque que assistimos em 2019 ao esvaziamento dos rios Pônsul, Sever e Tejo, com ecossistemas e populações gravemente afetadas. Mas a solução não passa pela construção de mais barragens, açudes e barreiras que agravariam os problemas do Tejo e afluentes. Passa antes pela revisão da Convenção de Albufeira, uma resolução da Assembleia da República votada favoravelmente também por PS e PSD que visa garantir um regime de caudais regulares diários. O interesse público tem de prevalecer sobre os lucros de qualquer grupo económico.
Os rios precisam de correr livres para o mar, contribuindo com sedimentos para o areal das nossas praias e com nutrientes que sustentam as nossas pescas e a biodiversidade costeira. Leitos livres e ecologicamente saudáveis protegem as populações e a agricultura das cunhas salinas e de eventos climáticos extremos porque são mais resilientes às cheias e à subida do nível médio do mar. Os rios livres são as veias do nosso território. São vida. E assim devem continuar.
* Professora. Activista social. Deputada do Bloco de Esquerda
IN "EXPRESSO" - 28/09/20
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