26/09/2020

CARMEN GARCIA

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ELAS 
(sobre o vídeo de sexo num comboio da CP) 

A sociedade que se escandaliza e que deita para fora o moralismo que guarda na algibeira é a mesma que partilha o vídeo vezes sem conta, que o comenta e analisa minuciosamente em vez de o denunciar.

Ontem, num grupo a que pertenço e onde todos os participantes são pais, alguém enviou um link do YouTube e perguntou “Vocês já viram isto?”. Abri o vídeo, vi sensivelmente até meio, e denunciei o conteúdo. Depois voltei ao grupo e morri um bocadinho por dentro com os comentários que li. O ponto comum? Todos, sem excepção, falavam sobre ela. Ela, a miúda. Ela, a mulher. Ela, a puta. Sobre eles? Nem uma palavra.

Sabem, a mim pouco me importa a idade dela, se sabia ou não que estava a ser gravada, se foi o desejo de fama que motivou o vídeo ou quantos foram os envolvidos. O que me importa é o comportamento da nossa sociedade que, ao mesmo tempo que apedreja e condena, assiste ao vídeo de olhos esbugalhados e com indisfarçada curiosidade. A sociedade que se escandaliza e que deita para fora o moralismo que guarda na algibeira é a mesma que partilha o vídeo vezes sem conta, que o comenta e analisa minuciosamente em vez de o denunciar.

E depois, como quase sempre, os bandos organizaram-se e rumaram ao tribunal do século XXI, também conhecido por Instagram, e começaram o ataque. De um lado as “mães de Bragança”, fiéis guardiãs da moral e dos bons costumes do nosso povo, sempre prontas a analisar mais uma pouca-vergonha em nome do superior interesse da nação. Do outro, os ordinários costumeiros que, mergulhados em frustração sexual, aproveitaram para a descarregar em mensagens e comentários sujos. Mas tudo no Instagram dela, é claro. Eles, coitados, já se sabe, estiveram lá praticamente obrigados.

Não sei o que motivou a gravação deste vídeo, não faço ideia se a sua divulgação foi combinada, mas sei, com certeza absoluta, que aquela miúda não fazia ideia de que, naquele momento, estava a destruir a sua vida. E  muito provavelmente a dos pais. Porque aquela miúda é filha de alguém. Podia ser nossa. E é melhor que tenhamos a noção de que, por muito boa que seja a educação que tentamos dar aos nossos filhos, não conseguimos controlar todas as variáveis e, por isso, nenhum de nós está livre de ter de lidar com uma coisa assim. O apelo da fama e do dinheiro fácil, às vezes, é demasiado difícil de combater.

Sou mãe de dois rapazes. E hoje estou preocupada. É que, ao contrário do que muitos parecem crer, aqueles miúdos não são heróis. São tão responsáveis como ela. Falharam tanto como ela quando decidiram ter sexo num local público, quando permitiram (?) as gravações, quando participaram em tudo isto. Mas foi ela quem teve de apagar a conta de Instagram, é ela quem se transformou em meme e em piada fácil nas redes sociais. Eles, atendendo aos comentários, ainda levaram umas palmadinhas nas costas. Uns campeões, aqueles dois, não é?

Num registo mais pessoal deixem-me contar-vos que, há uns anos, uma amiga terminou um relacionamento de quase uma década. Depois de isso acontecer, o então ex-namorado decidiu colocar na Internet três vídeos deles. Vídeos que ela tinha feito porque confiava nele e que ele jurou ter apagado depois. Vídeos que a mostravam nua e apaixonada. Vídeos que a levaram a ter de mudar primeiro de cidade e depois de país, vídeos que destruíram o casamento dos pais dela, vídeos que foram vistos milhares de vezes, partilhados, comentados em cafés, vídeos que a deixaram mergulhada em sussurros quando entrava na padaria ou na farmácia. E ele? Ele lá ficou, contente da vida, a vangloriar-se da sua masculinidade enquanto puxava ferro no ginásio.

Ela, tal como a miúda do vídeo do comboio, atravessou o inferno descalça. Porque, como tão bem sabemos, são sempre elas as culpadas. Elas, as miúdas. Elas, as mulheres. Elas, as putas.

IN "PÚBLICO" - 24/09/20

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