.
A greve que ecoa
da Justiça
A greve convocada pelo SMMP é uma reação forçada. Não é uma escolha leviana, mas uma resposta a anos de inação política. A magistratura do Ministério Público está a dizer, com toda a clareza, que já não consegue garantir um serviço público de justiça com a qualidade, eficiência e especialização que os cidadãos merecem
A decisão do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) de convocar uma greve nacional para o mês de julho constitui um momento histórico na história recente do Ministério Público português. Na verdade, quando os magistrados se veem obrigados a recorrer à greve, como sucedeu, o sinal de alarme não pode ser ignorado.
Longe de ser um ato precipitado ou meramente reivindicativo, a paralisação tem fundamentos sólidos, centrando-se, para além do mais, numa realidade que se tornou estrutural: a insuficiência grave e continuada de magistrados do Ministério Público em exercício de funções
Em todas as 23 comarcas do País, o cenário repete-se com contornos de urgência: falta de procuradores, acumulação de funções, exaustão e desânimo.
O número de novos magistrados que ingressa no Centro de Estudos Judiciários é manifestamente insuficiente para suprir as vagas criadas por aposentações, jubilações, licenças parentais, baixas prolongadas — muitas delas provocadas por burnout e doenças profissionais. O próprio quadro complementar, que deveria servir de reserva para suprir as ausências de magistrados, já não responde às necessidades mínimas.
Esta escassez de recursos humanos tem efeitos reais: processos que se arrastam, investigações comprometidas, decisões adiadas, e uma crescente perda de confiança por parte dos cidadãos no sistema judicial.
Para responder ao volume esmagador de processos, muitos magistrados trabalham até altas horas da noite, sacrificam fins de semana e vivem numa rotina de sobrecarga que, progressivamente, os desgasta física e emocionalmente.
O estudo sobre burnout promovido pelo Observatório da Justiça revela um quadro preocupante: a maioria dos magistrados opera em condições de exaustão sem acesso a acompanhamento psicológico, saúde ocupacional ou medicina do trabalho.
Contudo, em vez de reforçar as fileiras do Ministério Público, o Conselho Superior optou por soluções que apenas agravam a crise.
A extinção de lugares de efetivo, substituídos por vagas de auxiliares, o que acarreta necessariamente uma grande instabilidade para os magistrados, que todos os anos se vêem obrigados a concorrer, podendo ou não permanecer no mesmo lugar ou comarca, e a agregação de competências de diferentes áreas traduzem-se numa perigosa generalização funcional.
A especialização — peça-chave para uma justiça eficaz, sobretudo em áreas como família e menores ou criminalidade económica — está a ser progressivamente sacrificada em nome da gestão de escassez de magistrados.
Mais grave ainda, a deliberação que aprova esse modelo de movimento de magistrados é considerada, pelos magistrados, inconstitucional e ilegal.
Não por capricho, mas por violar princípios fundamentais da função pública: igualdade, legalidade, transparência e estabilidade profissional. Quando 75% dos magistrados subscrevem uma carta aberta pedindo a reversão dessa decisão, o sinal é inequívoco — há um problema sistémico que deixou de poder ser ignorado.
A greve convocada pelo SMMP é uma reação forçada. Não é uma escolha leviana, mas uma resposta a anos de inação política. A magistratura do Ministério Público está a dizer, com toda a clareza, que já não consegue garantir um serviço público de justiça com a qualidade, eficiência e especialização que os cidadãos merecem.
Reclamar a entrada imediata de 100 a 120 novos magistrados, com a abertura de um curso especial, a anulação da deliberação que aprovou o movimento anual dos magistrados, aprovado pelo CSMP não é apenas uma reivindicação dos magistrados— é uma exigência de sobrevivência institucional.
A greve dos magistrados é um sinal claro do descontentamento que grassa entre os magistrados do Ministério Público e, nada sendo alterado, as formas de luta terão que persistir.
* Procuradora da República e Presidente da Direção Regional de Évora do SMMP
IN "VISÃO"-29/07/25 .

Sem comentários:
Enviar um comentário