05/07/2024

MARIANA MORTÁGUA

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Quem quer
           imigração ilegal?

Em vez de resolver os problemas administrativos que impediam a regularização de imigrantes, Luís Montenegro preferiu quebrar a regra de humanidade elementar que sustinha a lei portuguesa: quem cá vive e trabalha deve ser incluído na comunidade. 

Há cem anos, a política de fronteiras abertas (e os resquícios do trabalho escravo, mas isso é uma outra história) alimentou a pujança do império norte-americano em crescimento. Em 1950, entravam nos EUA, vindos do México, 450 mil trabalhadores temporários e 50 mil imigrantes permanentes. Nas décadas seguintes, uma política restritiva limitou as entradas a 20 mil, 25 vezes abaixo das necessidades reais da economia. Com este fim da imigração regular, o esperado aconteceu: disparou a entrada clandestina, indocumentada e precária. Aos imigrantes passou-se a chamar “invasores”; e aos “invasores” passou-se a chamar “criminosos”.

O ultraliberal Ronald Reagan, presidente nos anos 1980, falou de “ameaça à segurança nacional” e “invasores comunistas”. Derrotados no Vietname, os EUA passaram a financiar guerras feitas por outros e instalaram a guerra nas suas fronteiras contra os “terroristas a dois dias de carro do Texas”. Quanto mais mexicanos pobres eram presos ao dar o salto, mais definitiva era a prova do crime. Mas continuaram a entrar. Do México, das Filipinas, da Índia, um pouco de todo o mundo.

Pintada de cores mais humanistas, sob Obama, ou mais cruéis, sob Trump, a política de militarização de fronteiras convive harmoniosamente com a entrada massiva de imigrantes sem documentos. A explicação é simples: a economia precisa deles. São o pilar da economia americana, levados por um sonho que consomem sem nunca alcançar. Invasores discretos das caixas de supermercado e das fábricas, armados de esfregonas, corta-relvas e trinchas. Milton Friedman, papa ideológico do neoliberalismo, proclamou-o urbi et orbi: “imigração só é boa se for ilegal” - o Estado a embaratecer o trabalho.

“Imigração ilegal” é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou

A ameaça da extradição e a cenoura do greencard são, assim, os elementos disciplinares sobre um exército cuja única “liberdade” é aceitar quaisquer condições. E mesmo quem antes entrava temporariamente para trabalhos sazonais passou a ficar em permanência, com medo de tentar de novo e falhar na fronteira. Este é o paradoxo das fronteiras fechadas: elas travam a saída quando o trabalho escasseia.

Se há coisa que nós, portugueses, sabemos, é que ninguém atravessa duas ditaduras a pé para depois voltar para trás. Mesmo que isso signifique a vida nos arredores de Paris com lama por baixo e chapa por cima. Mesmo que sejamos acusados injustamente de destruir o Estado Social de outro país. Mesmo que sejamos impedidos de alugar um apartamento, humilhados pelo chauvinismo e perpetuamente destinados a serventes e porteiras. Mesmo que tenhamos filhos marcados, no seu sorriso escondido, pela infância de miséria e segregação.

“Imigração ilegal” é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou. Em vez de resolver os problemas administrativos que impediam a regularização de imigrantes, Luís Montenegro preferiu quebrar a regra de humanidade elementar que sustinha a lei portuguesa: quem cá vive e trabalha deve ser incluído na comunidade. Os cruéis resultados de romper esta regra não são uma história por contar. É a história de todos os imigrantes clandestinos, dos EUA ao Dubai, de França a Portugal.

* Economista. Deputada à AR pelo BE

IN "PÚBLICO" - 02/07/24 .

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