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Lucília Gago e
os piolhos na peliça
Muitos políticos já devem estar arrependidos de terem empurrado, quase a toque de chibata, Lucília Gago para a arena mediática.
Horas antes de começar a entrevista da Procuradora-Geral da República na RTP 1, já jornalistas e comentadores, com a dose habitual de premonição, vaticinavam o seu fim. Quem anda nestas lides conhece as suas dores. Aqueles que, diariamente, têm feito a defesa de Marcelo Rebelo de Sousa, temiam o assunto das gémeas; outros que, nas boas graças do PS, têm conseguido tachos em alguns órgãos de comunicação, receavam qualquer caminho que a levasse a António Costa. Como a natureza humana tem a complexidade de alguns processos-crime, houve mesmo quem, perseguindo a qualquer pretexto o ex-governante socialista, a cobrisse de veneno apenas porque a PGR não lhes dera o exclusivo da entrevista. Mas todos foram uníssonos num desejo: Lucília Gago ia enterrar-se.
Enganaram-se.
A Procuradora surgiu segura, serena, claríssima, e fez tiro ao alvo. O processo Influencer não está terminado. Por hora, António Costa ainda é apenas testemunha, mas as coisas podem mudar. Por isso, o inquérito ainda não foi arquivado. O mesmo já tinha dito o procurador geral-adjunto Rosário Teixeira: “os processos estão em constante evolução”. De seguida, Lucília Gago arremessou o dardo ao Presidente da República, lembrando a sua falta de sentido de Estado quando, ressentido com o inquérito aberto no caso das gémeas, a classificou, logo ele, de “maquiavélica”. A pontaria não faltou também para atingir a atual ministra da Justiça, que, recentemente, veio dizer que “era necessário alguém que colocasse o Ministério Público na ordem”. Lucília Gago estranhou que a inquietação da ministra não lhe tivesse sido exposta numa audiência de mais de três horas que lhe concedeu logo depois de ter tomado posse. A Procuradora também não poupou os jornalistas, sempre sentados entre duas cadeiras. É conforme os amores: umas vezes clamam transparência, outras exigem o seu funeral. Vem isto a propósito da inclusão do célebre parágrafo sobre a abertura de um inquérito no Supremo Tribunal de Justiça visando o ex-primeiro-ministro António Costa. O que diriam se viessem a descobrir mais tarde que essa informação lhes tinha sido sonegada?
E tudo isto me fez lembrar um aforismo de Karl Kraus: “Há um critério cultural que procura livrar-se com todas as forças dos piolhos que infestam a peliça. Há outros que toleram os piolhos e acham que, mesmo assim, a peliça está em estado de ser usada. E há, finalmente, um último que acha que na peliça o principal são os piolhos e por isso os deixa dispor livremente dela”.
Deus os livre que a partir de agora a PGR decida falar todas as semanas, ou dia-sim, dia-não.
* Jornalista já perseguida por políticos e jornalistas apaniguados com o poder.
IN "NASCER DO SOL" - 09/07/24.
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