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Falsificação falsa
A que crime e, já agora, a que personalidade pertence este homem, esta mulher? Mais do que termos um feitio, nós somos dele. Às vezes, no tribunal, tento perceber se avancei na capacidade de ler pessoas. Era um senhor de 60 anos, cabelo branco ondulado e raro como seara em ano de seca, camisa aos quadrados, sapatos macios. Entrara algemado pelos dois guardas prisionais que vigiavam a porta. Pacífico quando se levantou para a sentença. Os abismos humanos – ciúme, ódio, amigo traído, cobiça – têm muitas caras, mas não caí longe: a violência era a da sedução. Um falsificador. Augusto não falou sobre os factos. Tem uma filha que não depende dele, era vendedor de automóveis antes de ser preso em 2016, frequentou Engenharia e “tem os antecedentes que constam do seu certificado de registo criminal”. A informação, que serve para qualquer arguido, era mais interessante do que parecia.
Augusto lidava com estrangeiros que querem legalizar a carta de condução em Portugal. Foi assim que, por exemplo, Dennis e Ansiul pediram ajuda. Ansiul deu 500 euros e os dados e recebeu uma guia do IMT (Instituto da Mobilidade e dos Transportes) – com data para receber a carta. O requerente assinou e, supostamente, um funcionário também assinou e colocou o selo. Só as assinaturas de Dennis e de Ansiul eram verdadeiras. Um dia, cansados de esperar, e sem conseguirem falar com Augusto, cada um deles foi pessoalmente ao IMT “pedir explicações sobre o atraso na entrega da carta.”
A PSP chamada na hora, a Polícia Judiciária a seguir, levou à apreensão de uma pen digital. Pensamos em placas, chapas, selos brancos, porosidade e grossura do papel, fios de prata, hologramas, fotos coladas, envelhecimentos à pressa, assinaturas imitadas. Há anos, a poeta Gisela Ramos Rosa – se ela ler isto, envio-lhe saudações e à memória do seu avô António – deu-me uma demonstração do seu trabalho enquanto perita forense da PJ. O olhar e dedos treinados fazem das imitações coisa reles nas mãos de um perito, tal a quantidade de pormenores sobrepostos a ter em conta. A Gisela deixou os falsos documentos por versos verdadeiros e também por isso lhe mando um abraço. [Outra coisa é entrar numa sucursal do Santander da cidade mexicana de Oaxaca, e sair de lá com uma nota falsa de 200 mil pesos – 50 euros -, e falhar o pagamento do táxi, mas assim me iniciei em moeda falsa mexicana]. Disse a juíza:
– Na mencionada pen estava o costumado modelo para fazer a guia e que foi usado pelo arguido em 2014/15 e podia ser usado para falsificações alterando os elementos que fossem necessários.
Augusto usara o requerimento de registo de carta comunitária de um tal Andreas e “forjou uma guia de substituição mas com o nome de Dennis e fotografia do mesmo aposta”. “Uma reprodução integral por jacto de tinta policromática, com excepção das assinaturas do requerente e do funcionário. O selo também foi feito com o jacto de tinta sobreposto por um traçado idêntico obtido por instrumento de tinta azul.”
Agora a minha surpresa:
– Atentos os factos provados e o seu certificado de registo criminal que é longo, extenso, onde entre outros compreende 72 crimes de falsificação de documentos…
Só de crimes em que foi apanhado! Que houve de verdade nesta vida de falsificação?
– … o tribunal decide condená-lo na pena de três anos de prisão efectiva e no pagamento das custas do processo. Um bom resto de dia para os senhores, terminou a juíza.
Augusto saiu em passos curtos, como se, quase a ser realgemado, já caminhasse com grilhetas nos tornozelos.
* Jornalista
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"- 04/08/22.
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