06/03/2024

AURORA RIBEIRO

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Ir ao cinema nos Açores
é resistir na Amazónia

Passar nos Açores um filme sobre um povo da Amazónia pode parecer remoto e exótico. Não é. Pensar na realidade e na pressão que sofrem os povos indígenas amazónicos obriga necessariamente a repensar a relação de Portugal com o Brasil, assim como todas as relações coloniais.

É hoje - escrevo na terça-feira - que o Cineclube do Faial nos traz, em antestreia nacional, o filme “A flor do buriti” de João Salaviza e Renée Nader Messora. Uma ficção sobre a realidade do povo indígena Krahô, que vive na floresta Amazónica.

Passar nos Açores um filme sobre um povo da Amazónia pode parecer remoto e exótico. Não é. Não estamos só a falar deles, estamos a falar também de nós. Pensar na realidade e pressão que sofrem os povos indígenas amazónicos obriga necessariamente a repensar a relação de Portugal com o Brasil, assim como todas as relações coloniais. E quando falamos de relações coloniais, não podemos pensar que aconteceram apenas no passado. Elas continuam ainda hoje.

A lógica colonialista de ver a natureza como uma amálgama de recursos prontos a servir a cobiça humana, nunca desapareceu. Aliás, intensificou-se, muito por conta das possibilidades técnicas que continuam a permitir ir buscar mais e mais longe, novas formas de minar, de abater, de produzir, de explorar, de comercializar. Devemos lembrar-nos que durante o período da expansão portuguesa e europeia as próprias pessoas eram vistas como recursos, sendo que muitas delas foram forçadas, vendidas, escravizadas. Num tal tipo de visão do mundo e da relação entre as pessoas, os povos nativos de vários continentes foram constantemente saqueados, explorados, dizimados. Largas dezenas de milhões de pessoas foram mortas pelo mundo, povos inteiros desapareceram para sempre, e com eles a sua cultura e cada uma das suas formas únicas de viver. Um sem número de fins do mundo que aconteceram. O que nos faz viver hoje em plena fase pós-apocalíptica.

Neste pós-apocalipse, cada povo indígena existente é um povo indígena resistente. Alguns direitos humanos e territoriais foram conseguidos para alguns destes povos, mas nem estes se vêem livres dos crimes do colonialismo. Todos os anos há indígenas assassinados e a tensão territorial gerada pelo agronegócio continua.

Enquanto portugueses, herdeiros deste pesado legado, é nosso dever rever a forma como olhamos para a nossa história, as injustiças que daí advieram no passado, mas sobretudo responsabilizarmo-nos pela não perpetuação de uma lógica criminosa no presente e no futuro. Esse trabalho começa no reconhecimento dos crimes, na percepção de que o privilégio branco e ocidental atual foi obtido através da exploração de outros humanos e não humanos. E que isso só foi possível por uma questão cultural. Porque os povos indígenas foram - e muitas vezes ainda são - diminuídos, ignorados, desvalorizados, ridicularizados.

Finalmente, enquanto sociedade global na qual vivemos, sabemo-nos presos a um sistema político-económico muito compacto e condicionador que criou crises tão profundas quanto são as crises ambientais e a crise climática. Assim, a existência de povos indígenas com formas próprias de relação entre si e com a envolvente - as plantas, os animais, a terra - é uma oportunidade viva de comprovar a infinidade de possibilidades em que podemos querer viver, que valores nos importam enquanto sociedade e que escolhas faremos no futuro. Tudo isto é cultura, é criatividade, é resistência.

* Licenciada em Cinema, mestre em Comunicação e Media, bolseira de doutoramento em Sociologia no ICS da Universidade de Lisboa. Nasceu em Lisboa e vive na Horta, Açores, desde 2008. Co-diretora do Festival Maravilha na Horta

IN "ESQUERDA" -05/04/24 .

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