17/11/2023

LUANA ALVES FARINHA

 .



Com a luz verde do ocidente 
não existem linhas vermelhas

Amanhece. Com a chegada do primeiro raio de sol, a população respira. Sobreviveram. “Eles fizeram com que temêssemos a noite e ansiássemos a manhã”, dizia, há dias, um habitante de Gaza. É à noite que os ataques se intensificam. É à noite que a esperança se vai. Com a eletricidade cortada, os pais temem morrer sem olhar os filhos nos olhos uma última vez. A luz entra pelas cortinas. Um novo dia. Um pequeno descanso do inferno que se vive em Gaza. As famílias abraçam quem parte para as filas intermináveis a fim de conseguir alimento, esperando que volte.

Na rua, os mais novos brincam nas crateras deixadas pelas bombas israelitas, com o brilho nos olhos que ainda não lhes foi arrancado. Aqueles que não brincam saem à procura de animais pelos destroços, alimentando-os com o que conseguem e confortando-os como sabem. “Eles também têm medo das bombas, como nós”, dizem. Toda a vida, em Gaza, é sinal de esperança.

Pelo mundo, os protestos continuam e alguns sobem de tom. Não me surpreenderia que viessem a tornar-se agressivos. O desespero de não ser ouvido torna o ser humano violento. O desalento da indiferença perante o sofrimento torna o ser humano amargo. E quem pode censurar essa amargura?

Apesar das vidas que se perdem, a vida, essa, continua. Tem de continuar. Em Gaza, o maior hospital funciona sem eletricidade. Os recursos são escassos, o que obriga a racionar. A quantidade alarmante de feridos que se amontoa nos hospitais obriga a fazer escolhas. Não é possível salvar todos; não há meios. Os médicos são obrigados a tratar apenas aqueles que apresentem alguma hipótese de sobrevivência, deixando para trás, sabe-se lá a que a custo, quem se encontra em pior estado. Resta esperar que a morte chegue. Que chegue rápido e seja mais gentil que os últimos dias de vida como a conheceram.

Quem tem a sorte de ser socorrido é forçado a enfrentar a dor como não a imaginamos. Relatos de amputações feitas a crianças sem qualquer tipo de anestesia arrepiam até os mais fortes. “Os médicos têm de segurar a cabeça da criança numa determinada posição para impedi-la de engasgar, porque a dor pode levar a que fechem as vias respiratórias e sufoquem”, diz Omar Abdel-Mannan, médico na Faixa de Gaza. Organizações internacionais falam num “cemitério a céu aberto” e apelam a um cessar-fogo para permitir que a ajuda humanitária entre. Do outro lado do mundo, Joe Biden afirma que um cessar-fogo está fora de hipótese.

Hospitais, mesquitas, escolas e campos de refugiados, locais onde a população tem procurado abrigo, têm sido alvo de ataques diários. A mensagem é clara: em Gaza não existem abrigos. Ninguém está a salvo.

A comoção gerada pelo primeiro bombardeamento a um hospital fez com que Israel se apressasse a afirmar que este tinha sido causado por um rocket lançado pelo Hamas. Lá se acalmaram os ânimos. Lá se foi tentando justificar o injustificável. Agora, raro é o dia em que não chega até nós a notícia de que mais um hospital foi atacado. Israel já não tenta ilibar-se. Já não acusa o Hamas de estar por detrás do massacre a que o mundo assiste. Talvez porque não precise de o fazer. Enquanto os Estados Unidos davam aulas, Israel tirava apontamentos. Percebeu que bastava arrogar-se da nobre tarefa de defender a civilização contra os bárbaros e o mundo dar-lhes-ia luz verde. No fim de contas, não está Israel a servir a democracia e os valores ocidentais? Ao fazer com que bebés prematuros, retirados das incubadoras por falta de eletricidade, morram antes de poderem ser embalados pelas mães, Israel está a assegurar de que não irão crescer para se tornar membros do Hamas.

“Israel tem o direito de defender-se”, repetem os líderes do Ocidente como um mantra, para assegurar os seus interesses ou para ajudar a dormir quando a noite chega. Foi o Ocidente, com a sua ganância e a sua indiferença perante o sofrimento daqueles que sempre considerou inferiores, que deu luz verde a este massacre. E com a luz verde do Ocidente, não existem linhas vermelhas.

* Estudante de direito, ativista e aspirante a jornalista

IN "NOVO" -15/11/23

Sem comentários: