23/09/2023

JOSÉ SOEIRO

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NEGREIROS EM PORTUGAL



Dormir numa bagageira

O aparato da tecnologia avançada organiza as mais indignas regressões sociais. Radical é uma bagageira ser o quarto de um trabalhador.

De visita a Lisboa, John chamou um Uber mal chegou ao aeroporto. O carro veio buscá-lo, conta-nos a última edição do Expresso, mas o motorista resistiu a pôr as malas do turista na bagageira. Insistência de um lado e renitência do outro, houve uma altercação, até que a PSP interveio e exigiu que o motorista abrisse a bagageira do carro. Dentro dela, estava um homem - um outro motorista, que faz daquela bagageira o seu quarto, recanto possível para repousar o corpo. Segundo o jornal, não é caso único. A situação é comum entre os migrantes do Indostão a trabalhar para a Uber.

Eis a condição extrema dos trabalhadores da gig economy num país europeu do século XXI. Lisboa, paraíso dos nómadas digitais, capital da Web Summit, viveiro de “unicórnios”, sede do centro tecnológico europeu da Uber, “modelo de ouro” das plataformas: cidade sem teto para quem trabalha. Por mais algorítmica que seja a atividade das aplicações digitais, por mais desmaterializados na “cloud” que sejam os seus mecanismos de controlo, as multinacionais de TVDE não sobrevivem sem o trabalho vivo de mais de 60 mil motoristas no nosso país. Os lucros extraídos a cada viagem formam-se à custa do esmagamento do que é pago aos “parceiros” que executam o trabalho que as plataformas vendem aos consumidores: transportar passageiros.

Somada à crise da habitação - transformada também num ativo financeiro disputado em mercados internacionais de investimento e especulação - esta exploração brutal tem um preço pesado: reenviar-nos ao pior do século XIX. Com horários de 10, 12 ou 14 horas, com os custos do carro e do combustível a seu cargo, com a percentagem sugada pelas multinacionais e pelos intermediários a cada corrida, a remuneração dos migrantes que conduzem os carros não chega sequer para sustentar as mais elementares condições de existência. Como ter uma cama.

O outro lado desta “nova economia”, parte intrínseca do seu “modelo de negócio”, é este esclavagismo digital. A ausência de habitação e os migrantes empilhados em quartos ou a dormir por turnos em bagageiras fechadas, num carro que não pode parar de rodar, são o reverso da monocultura do turismo e da desregulação laboral da economia uberizada. São a sua forma de vida.

Impor contratos de trabalho, tabelar tarifas de viagens, estabelecer contingentes de carros disponíveis, fixar tetos máximos para as rendas, impedir a venda de casas a quem não pretende viver no país nem habitá-las - tudo medidas radicais, indignam-se alguns… Mas reflitamos bem sobre a barbárie perante os nossos olhos. Não há contradição mais radical do que o aparato da tecnologia avançada ser o instrumento que organiza as mais indignas regressões sociais. Radical é uma bagageira ser o quarto de um trabalhador.

* Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.

IN "EXPRESSO" - 14/09/23.

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