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Se eu fosse mulher,
teria de me sentir em ruínas
para alguém se não sentir em ruínas.
Se eu fosse mulher,
teria de esperar que alguém me dissesse e esperar o momento para lhe dizer que não me dissesse. (...)
Se eu fosse mulher, sentiria as mãos onde não queria (...).
Se eu fosse mulher, não haveria melindres que me melindrassem (...)."
Este é um excerto de um longo poema - Se eu fosse mulher -, publicado em 2006, como inédito, na revista Confraria do Vento. O autor é Boaventura Sousa Santos. Esse mesmo, o sociólogo, o pensador do "sul global", o diretor emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) que fundou há mais de 40 anos na Universidade de Coimbra.O mesmo que num artigo - As paredes falavam quando ninguém se atrevia, da autoria de três ex-investigadoras daquele centro - inserto num livro da editora internacional Routledge sobre assédio sexual na academia, publicado em março, é crismado de "professor estrela" e acusado de, entre outros comportamentos inapropriados, ter assediado sexualmente uma aluna estrangeira de doutoramento, colocando-lhe a mão na perna enquanto propunha trocar "afetos" por apoio académico.
O mesmo que este domingo, num artigo publicado no site do Expresso sob o título "Uma reflexão autocrítica: um compromisso para o futuro", escreve: "Nascido em 1940, sou de uma geração em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, quer se trate da convivência ou da linguagem, eram aceites pela sociedade. Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados. Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em ações pouco construtivas. Reconheço que em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos. Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto e por isso lhes devo uma retratação."
Parece um mea culpa - é aliás assim, nesses termos exatos, que o Expresso o apresenta: "Um "mea culpa sobre o seu comportamento". Outros meios reiteraram: "Boaventura admite comportamentos inapropriados".
Mas quais? Onde está a retractação anunciada? De que comportamentos? Podemos ler o texto do início ao fim várias vezes - nada está ali de retractação. Pelo contrário: "Este meu reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de atos graves que me têm vindo a ser imputados."
É o reconhecimento de quê, então? De que atos "não graves" que no entanto, admite, podem ter causado sofrimento?
Já sabíamos que Boaventura sabe (como não?) que o machismo e o sexismo existem como estrutura, e que é até capaz de perceber - ou pelo menos de o escrever, como o poema citado demonstra - que as mulheres são conformadas a não mostrarem melindre, a não se queixarem, a suportarem, a calarem. A aceitar sentirem-se, serem, ruínas para que outros caminhem incólumes, imperiais e satisfeitos, sobre essa devastação.
É desse silenciamento, dessa vitimização, dessa redução a ruína que fala o artigo da Routledge, ao citar as pichagens ("Todas sabemos, Boaventura") que em 2018 apareceram nas paredes do CES como única forma de denúncia possível: ninguém mais falava. Mas agora, que houve quem falasse, e que Boaventura Sousa Santos reagiu ao artigo e a uma das mulheres que o acusou publicamente de tentar coagi-la a contactos sexuais - a ativista indígena Moira Millan - com a ameaça de proceder criminalmente, execrando tudo como "insulto", "difamação vil", "distorção e falsificação da realidade", e até "ataque ad hominem a quem se distingue por lutar por um mundo melhor", este texto no Expresso pretende ser o quê?
Quem são as "algumas pessoas" a quem o texto pretende pedir desculpa?
Vejamos: há uma "acusadora" pública identificada a quem até hoje Boaventura não ameaçou com processo nem desmentiu sequer. Trata-se da brasileira Isabella Gonçalves, deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que assumiu (primeiro anonimamente, ao Público e Observador, e depois "dando a cara"), ser a estudante de doutoramento que no artigo da Routledge abandonou o CES depois de "o professor estrela" a ter, numa reunião de trabalho, assediado.
"Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação". É isto, narrado ao site jornalístico brasileiro Pública, que Isabella diz ter-se passado em 2013 com o então diretor do CES e seu orientador.
Como resultado, e dando-se conta de que o apoio a uma denúncia formal não existia - "Todos diziam que eu não era o primeiro caso. Lamentavam, mas não davam suporte ou saída" - decidiu regressar ao seu país. "Boaventura já era conhecido por condutas abusivas. Humilhava estudantes em público, xingava pesquisadoras, tinha posturas impróprias nas festas. Mas era diretor do centro académico. Eu sabia que nada aconteceria com ele".
Antes ainda das suas declarações públicas, e no âmbito da investigação que o DN fez ao caso, a situação (o assédio à aluna estrangeira) tinha sido confirmada ao jornal por alguém que soube dela à época, e que garantiu que no CES bastante mais gente tivera conhecimento do ocorrido - até porque Boaventura acabaria por ser substituído, a pedido da estudante, na orientação do doutoramento. Essa mesma fonte informou o DN de que Boaventura teria depois tentado pedir desculpa à aluna pelo seu comportamento.
Facto atestado nas várias entrevistas que Isabella deu: "Ele fez uma reunião online comigo para pedir desculpas. Disse que se apaixonou, que era natural entre duas pessoas adultas. Quis manter a orientação da minha tese. Não topei." É depois de terminar a tese, em 2018, que Isabella soube que nas paredes do CES começaram a aparecer graffiti com acusações a Boaventura - as pichagens que dão o nome ao artigo do livro da Routledge. Diz que Boaventura foi a Belo Horizonte (capital de Minas Gerais, o estado onde vive Isabella e do qual é agora deputada), e insinuou que seria ela a fonte das pichagens - uma das quais o acusava de violação.
Os graffiti deram, como o DN relatou na sua investigação, origem a interpelações numa reunião no CES. Na qual o então ainda diretor da instituição terá dito "tenho relações livres com pessoas adultas". Ou que "tudo o que fizera era consensual".
Isabella tinha 26 anos quando, de acordo com o seu relato - que, repita-se, não foi até hoje desmentido pelo sociólogo - Sousa Santos a assediou. Era uma adulta, decerto; mas, como frisou uma das académicas do CES ao DN, existe entre um diretor de um centro académico e orientador e uma estudante de doutoramento e orientanda uma relação de poder insofismável (aliás, aquilo que a ex estudante narra é precisamente um exercício ordinário desse poder).
Não há nascimento em 1940 que desculpabilize a situação que Isabella descreve; não há caldo cultural que justifique que um "desconstrutor" profissional de relações de poder surja a pretender só agora ter percebido que afinal pode ter sido "protagonista de comportamentos inapropriados". Não há mea culpa sem assunção de culpa. E não há, decerto, autocrítica sem crítica.
O que Boaventura Sousa Santos faz no texto do Expresso, ao admitir que "inconscientemente" fez mulheres sofrer mas que não se tratou de comportamentos "graves", é desculpabilizar o assédio; é dizer que "acontece" e que é chato mas também não se exagere - até porque era "a norma" há tão pouco tempo, que diabo. O costume - aliás ainda esta sexta-feira o parlamento chumbou a criação de um tipo criminal com esse nome, não se vá "acabar com a sedução" ou, como teme a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, criminalizar "condutas de assédio sexual indesejadas que não ultrapassem a grosseria ou má-educação".
Não, não é uma retractação; é um retrato. De Boaventura e nosso.
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