.
EUTANÁSIA 🖤
Testemunho de uma enfermeira, que sirva para reflexão sobre um assunto tão sensível.
Sou enfermeira
Há dez anos que todos os dias convivo com a dor, a morte e o sofrimento. Sei exactamente a que cheira a miséria, conheço de cor o cheiro ácido das melenas e continuo a arrepiar-me com o cheiro putrefacto de algumas úlceras de pressão. Ainda era estudante, do último ano da licenciatura, quando, em contexto de paliativos domiciliários, vomitei no quarto de uma doente. Porra, tudo ali gritava morte. Aquele cheiro ainda hoje me assombra. A merda, a bílis, o exsudado e os tecidos mortos das feridas. Não aguentei.
Mas depois aqui ando, a discutir o direito de morrer com gente que nunca viu sofrimento sem ser em filmes e que acha que com cuidados paliativos tudo se resolve. Como se os melhores paliativos do mundo mudassem o facto de alguém estar preso a uma cama, a comer por uma sonda, a urinar por outra, a sujar fraldas atrás de fraldas e a criar escaras que, sim, às vezes são inevitáveis. Como se os paliativos mudassem a realidade de quem tem que respirar 16h por dia, através de um buraco que os médicos lhe abriram na garganta, com a ajuda de um ventilador. Não é uma questão de não ter dores, de ter uma linda vista para o rio ou a família por perto. É uma questão de não querer, de não aceitar, viver assim.
Atrás das secretárias ou dos ecrãs de computador, lá onde não chega o cheiro da morte e onde não se ouvem os gritos das dores que a morfina não resolve, é fácil opinar. É fácil falar bonito sobre as escolhas dos outros quando temos umas pernas que nos obedecem, quando a incontinência para nós é apenas uma palavra usada nos anúncio das fraldas e quando a pior dor que já sentimos se resolveu com tramal. Difícil é estar lá, dar a mão a essas pessoas e dizer-lhes que, mesmo contra a sua vontade, terão que continuar a sofrer. Porque alguém decidiu por elas sobre a sua própria vida. Porque alguém decretou que não estão capazes de decidir por si mesmas ainda que as suas faculdades cognitivas estejam intactas.
É, eu também tinha opiniões muito romanceadas antigamente. Mas acho que as vomitei todas em Fernão Ferro, na casa da doente de 41 anos que apodrecia numa cama e que repetia incessantemente duas palavras: "deixem-me morrer"."
* Enfermeira e mãe
IN "NOVA GENTE" -20/02/2020
𝗡𝗥: 𝗢 𝘁𝗲𝘅𝘁𝗼 𝗱𝗲 𝗖𝗔𝗥𝗠𝗘𝗡 𝗚𝗔𝗥𝗖𝗜𝗔 𝗲́ 𝗮𝗿𝗿𝗲𝗽𝗶𝗮𝗻𝘁𝗲, 𝗳𝗼𝗶 𝗲𝘀𝗰𝗿𝗶𝘁𝗼 𝗵𝗮́ 𝗺𝗮𝗶𝘀 𝗱𝗲 𝘁𝗿𝗲̂𝘀 𝗮𝗻𝗼𝘀, 𝘀𝘂𝗴𝗲𝗿𝗶𝗺𝗼𝘀 𝗾𝘂𝗲 𝗮 𝗵𝗶𝗲𝗿𝗮𝗿𝗾𝘂𝗶𝗮 𝗱𝗮 𝗶𝗴𝗿𝗲𝗷𝗮 𝗰𝗮𝘁𝗼́𝗹𝗶𝗰𝗮 𝗼 𝗹𝗲𝗶𝗮 𝗯𝗲𝗺, 𝗮 𝗰𝗼𝗺𝗲𝗰̧𝗮𝗿 𝗽𝗲𝗹𝗼 𝘀𝗲𝗻𝗵𝗼𝗿 𝗽𝗮𝗽𝗮.
* Bem haja TÉTÉ por o envio deste texto..
Sem comentários:
Enviar um comentário