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A pobreza é alheia à geografia
O discurso político em Portugal, mais do que a ação, tem sido frequentemente dominado pela dicotomia litoral-interior e por uma visão paternalista segundo a qual a província - despovoada, deprimida e desfavorecida - carece de urgentes medidas que a discriminem positivamente em nome da chamada "coesão territorial".
Todavia, e apenas para referir duas notícias de abertura de um noticiário televisivo da semana passada, os 14 mil utentes do novo centro de saúde de Marvila, em Lisboa, que não dispõem de médico de família, não parecem, à partida, menos merecedores de preocupação do que os 400 da freguesia da Granja, em Mourão, que se encontram na mesma situação.
Se cabe ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, vivam onde vivam, a um conjunto de serviços essenciais (educação, água, saneamento, justiça, saúde, transportes, etc.), a confrontação que artificialmente se tem estabelecido entre o interior pobre e o litoral próspero esbarra fatalmente na evidência dos números, os quais demonstram que as periferias das grandes cidades estão particularmente vulneráveis à pobreza e aos mais agudos fenómenos de exclusão. Veja-se, por exemplo, o caso da sub-região do Tâmega e Sousa, a escassas dezenas de quilómetros do mar, a qual, em boa verdade, é a região mais periférica da Área Metropolitana do Porto e uma das mais pobres da Europa. Ou de que modo também os arredores de Lisboa padecem de carências diversas e de problemas sociais igualmente chocantes.
No mínimo, estas realidades deviam obrigar os responsáveis a uma reflexão séria, ponderada e liberta de falsos dogmas. Sendo facilmente demonstrável que a prevalência da pobreza e dos problemas estruturais não obedece à geografia nem se torce em função do maniqueísmo de certos discursos, seria aconselhável que, pelo menos, se reconhecesse que certas zonas do litoral são tão merecedoras de discriminação positiva como as áreas do interior - as quais, todavia, continuam a monopolizar o discurso político e parecem reclamar para si o exclusivo da solidariedade do Estado.
* Reitor da Universidade do Porto
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 11/04/23.
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