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Tenho uma cabra a parir
Bem sei, derramámos café em cima da memória e esquecemos como estávamos há três anos: amodorrados em casa, a contar mortos e infetados, parcas saídas para compras ou passear o cão. Era o estado de emergência e, ainda assim, dois em cada três vizinhos pudemos continuar a trabalhar. Um dos efeitos colaterais da pandemia foi o ganho de muitos, forçado ou não, em competências digitais. De tal forma que, em poucos dias, estávamos convertidos aos WhatsApp, Zoom e Teams desta vida, falando com familiares e amigos por videochamadas, ou em reuniões com colegas de empresa, clientes e até em congressos. Isto, enquanto a maioria dos nossos filhos tinha aulas no computador. Foi o auge do teletrabalho. A era obscura do confinamento revelou que o dogma do corpo presente no serviço tem menos de gestão empresarial do que de religião instintiva. É evidente que há trabalhos que são presenciais por natureza, e que continuarão a sê-lo até que alguém ensine os robôs a repararem canalizações. Mas também ficou patente que há muitas outras ocupações onde o corpo presente do empregado só serve para estorvar os da limpeza.
Muitos empregadores perceberam, sem dúvida, as vantagens de ter funcionários a trabalhar em casa - economizando no mínimo um computador, uma cadeira, uma mesa e quatro valiosos metros quadrados de escritório - e avaliá-los mais pelos resultados que pelos seus hábitos, passe o exagero de se apresentarem de pijama no ecrã do cliente. Mas há resistências e abunda a teimosia. Os chefes querem o rebanho à vista, enquanto o rebanho resiste a voltar ao redil. Há exceções de todo o tipo, mas essa é a tendência geral na área de serviços, que representa mais de dois terços da nossa economia. Números oficiais revelam que um em cada cinco portugueses está em teletrabalho, mas há margem para uma expansão desse regime, em modelos mistos previstos na lei ou suscetíveis de negociação laboral.
Como não há mal que não traga um bem, a pandemia descobriu as enormes vantagens do recurso ao teletrabalho, para empresas, trabalhadores e para a própria economia. O trabalho remoto pode significar redução de custos, com ganhos de produtividade, possibilitar o aproveitamento de talentos à distância e diminuir viagens; e os trabalhadores economizam tempo de deslocações, com uma melhor autodisciplina nos horários, que pode facilitar a relação familiar. Apesar dos riscos, como o isolamento social, ou falta de controlo do tempo em casa, as vantagens do teletrabalho parecem superar os seus custos, sobretudo em fórmulas mistas, conjugadas com o trabalho presencial.
É claro que estar pessoalmente facilita a comunicação, agiliza processos e elimina possíveis efeitos adversos de períodos prolongados de atividade solitária. O peso dos fatores muda certamente de acordo com as atividades, e dada a vastidão do tecido laboral, não há respostas categóricas. Num quadro geral regulado, como é desejável, é preciso explorar novos equilíbrios, abrindo novas e interessantes oportunidades. Para vigorar já em maio, as alterações ao Código do Trabalho, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, são um avanço importante, mas não suficiente. A nível macroeconómico, o trabalho remoto viabiliza a transformação do modelo produtivo em muitas atividades, e com vantagens: permite poupar em deslocações e energia, melhora o ambiente, favorece a empregabilidade das pessoas com mobilidade reduzida e, sobretudo, é uma grande oportunidade para revitalizar regiões do Interior quando dotadas de banda larga nas telecomunicações (como se exige), incentivando a deslocação de população urbana para as zonas rurais, invertendo o abandono desse Portugal esvaziado de gente. A propósito, fico-me por aqui: É que tenho uma cabra a parir.
* Jornalista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 11/04/23.
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