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13 de fevereiro éo fim ou o princípio?
A apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa encerrou um processo importante, inédito entre nós, mas que no fundo replicou o que tem vindo a ser feito noutros países, a reboque de novas orientações do Vaticano. Enquanto sociedade, devíamos estar gratos àquele conjunto de pessoas, idóneas e credíveis, que durante estes últimos meses puseram toda a sua capacidade e todo o seu conhecimento em benefício do bem-comum, sobretudo, estiveram disponíveis para ouvir o que centenas de vítimas têm para contar.
São testemunhos difíceis de escutar, até para profissionais experientes, conforme explicou Pedro Strecht hoje de manhã, na Fundação Calouste Gulbenkian. Podem não ser relatos surpreendentes, mas são chocantes. Não tanto por causa dos pormenores sórdidos e escabrosos, mas porque nos confrontam com uma dura realidade: a vulnerabilidade daqueles seres humanos desprotegidos que não soubemos acolher, defender, apoiar. Chocam-nos, e deviam responsabilizar-nos a todos nós, clérigos, não clérigos, católicos, não católicos, crentes, não crentes.
O dia de hoje soou também a princípio porque, na verdade, a pergunta que fica nas cabeças de todos os que estiveram na Gulbenkian é: e agora? Agora, o que se segue? Agora que sabemos algo mais sobre os abusos sexuais de crianças e jovens, perpetrados na esmagadora maioria dos casos por quem era suposto ter guiado e educado, como prosseguir? D. José Ornelas teve a coragem não só de iniciar o processo como de fornecer as condições necessárias para que a equipa coordenada por Pedro Strecht desenvolvesse o seu trabalho: sem esconder, sem ocultar, sem omitir. Na Conferência Episcopal Portuguesa, o bispo de Leiria-Fátima eliminou contrariedades, ignorou pressões, fez valer a sua voz e, afinal, a voz do Papa Francisco: “tolerância zero”. Como também disse Strecht esta manhã, “a dor da verdade doi, mas só ela liberta.”
A verdade liberta-nos, e não é só aos crentes que a verdade liberta. A verdade liberta todos os cidadãos conscientes e empenhados na construção de um futuro melhor. O dia de hoje soa a princípio porque, no imediato, há que cuidar e tratar das vítimas. Para o Ministério Público foram remetidos 25 testemunhos, mas o mais provável é a maioria deles não ter grandes consequências (muitos estarão prescritos). A importância do estudo da Comissão Independente não decorre do desfecho que esses 25 casos venham a ter na Justiça (alguns até já foram arquivados). Para quem tem acompanhado todo este processo, isto não constituiu surpresa no dia de hoje. A importância do estudo da Comissão Independente reside no facto de uma instituição relevante como a Igreja Católica estar, à vista de todos, a fazer um autêntico ato de contrição. Se é ou não capaz de prosseguir com a revolução, só o tempo o dirá.
Também soa a princípio porque importa garantir terapia e acompanhamento psicológico às 512 vítimas que se dispuseram a testemunhar. Essa responsabilidade cabe à Igreja, mas não só: cabe ao Serviço Nacional de Saúde e ao Estado português. A Comissão Independente cessou hoje funções. Mas, por aquilo que sabemos dos mecanismos interiores que conduzem as vítimas de abusos a querer falar, também é preciso ter em conta que, na sequência do dia de hoje, é natural que haja novos testemunhos – e, com eles, outros seres humanos vulneráveis para acompanhar, cuidar e tratar.
Por fim, é preciso ainda que a sociedade portuguesa – onde, como sabemos, nascem cada vez menos crianças – entenda, de uma vez por todas, o valor da infância, inclusive no desenvolvimento económico-social do País. E é com muita tristeza que escrevo que, aqui, então, estamos mesmo, mesmo no princípio.
* Jornalista, subdirectora da revista
IN "VISÃO" - 13/02/23.
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