31/01/2023

AURORA RIBEIRO

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Mamilos de trazer ao peito

Para este início de 2023, reúno nestas linhas alguns gestos recentes da vida artística e cultural açoriana. A escolha é pessoal e, mesmo que não tenha qualquer feição partidária, não deixa de ser, claro, política.

A arte avança sempre um, dois ou mil passos mais à frente. Em certos momentos e temas, só mesmo a arte consegue avançar. O seu poder tanto reside na mais subtil simplicidade, como em estrondosos impactos, ou por via de forças desconhecidas. Por vezes alastra rapidamente em terreno fértil, outras vezes demora a entranhar-se e a fazer-se valer. Seja como for, terá de haver quem a faça, quem a viva, quem a incentive e quem a debata. Para este início de 2023, reúno nestas linhas alguns gestos recentes da vida artística e cultural açoriana. A escolha é pessoal e, mesmo que não tenha qualquer feição partidária, não deixa de ser, claro, política.

Rádio - “O Fim dos Princípios” é um programa de rádio na Antena 1 Açores. Foi pela primeira vez para o ar a 20 de junho de 2021. Selecionada e lida por Helena Barros, “a literatura ao abrir da semana” abre um buraco no tempo e no espaço onde nos suspendem palavras, açorianas e de além mar, de hoje e de ontem. Literatura sobre a arte, o amor, o desejo, as ilhas, a felicidade ou a literatura em si mesma. Um aceno de liberdade da própria Helena, que aconchega cada excerto lido na partilha da sua emoção e arte. Aos domingos, a partir das 21h ou em permanência na RTP Play.

Cinema - É incontornável o filme sensação “O Lobo e o Cão” de Cláudia Varejão, a que o público faialense poderá assistir já no próximo mês pela mão do Cineclube do Faial e que a autora apresenta como “uma encantada ode à comunidade queer da ilha” de São Miguel, onde filmou. Mas importa salientar o legado de mostras como a “Imprópria”, um evento cultural de intervenção social dedicada ao cinema de igualdade de género ou o ciclo “As Malcriadas”, que o Cineclube do Faial trouxe em 2022, com o fito de trazer histórias de mulheres que se insurgem face à cultura patriarcal, às amarras da tradição e da religião, ou perante tensões sociais e políticas.

Artes Plásticas - Raquel Vila Arisa é a “Lapa Brava”, ilustradora, em cujo trabalho as mulheres são motivo central, e onde os seus corpos se escondem ou afirmam na sua relação com o mundo, com as tradições, com os homens e com outras mulheres. Além da leitura crítica, as composições em stencil desta autora exortam também à emancipação feminina, não apenas da mulher enquanto ser abstrato, mas da mulher e da rapariga açoriana de hoje. Helena Chaves Bulcão iniciou recentemente o trabalho de artesã com o nome “Pudiquices”, criando objetos inspirados em partes do corpo censuradas e mesmo desconhecidas (para alguns). Mamilos, vulvas e clitóris de usar ao peito ou trazer por casa. Ambas as artistas estão no instagram.

A transformação não acontece sem ousadia, provocação e muito apoio. Falta ainda que entidades culturais regionais, como museus, bibliotecas e outros, se atrevam a acolher, convidar e a incentivar a criação, a provocação e o diálogo sobre os assuntos do aqui, do agora, de toda a gente. No Faial isso fará, certamente, toda a diferença.

* Licenciada em Cinema, mestre em Comunicação e Media, bolseira de doutoramento em Sociologia no ICS da Universidade de Lisboa. Nasceu em Lisboa e vive na Horta, Açores, desde 2008. Co-diretora do Festival Maravilha na Horta.

IN "ESQUERDA" - 28/01/23.

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