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O fim da justiça divina
A despenalização da morte medicamente assistida já viveu, sem morrer, três vezes. Com maiores ou menores dúvidas do presidente da República ou rejeições do Tribunal Constitucional, a obstinação terapêutica de alguns quadrantes políticos em querer impor um referendo em matéria de direitos fundamentais tem forçado artificialmente o adiamento da solução que urge e que, agora apurada à filigrana, não pode continuar a ser arma de arremesso político e de esquecimento selectivo.
O achincalhamento político abraçado pelo PSD, ao propor um referendo à última da hora, depois de nunca o ter apresentado, é mais uma triste notícia para o tempo da política e para a justa equação da sua vida útil. Parece uma trapacice. Tanto mais que Luís Montenegro só tem a oportunidade de apresentar a proposta de referendo porque o PS acedeu, na semana passada, ao adiamento da votação final. O que se passou nos entretantos da política para que sociais-democratas resolvessem agitar um tema tão amplamente discutido, acertado e revisto pelos próprios, agitando com uma consulta popular "in extremis", é um inusitado momento de "stand-up" demagógico que os aproxima das manobras tácticas da extrema-direita. A fiabilidade do centro-direita está pela hora da morte, rendida ao calculismo político.
A infelicidade serve-se, depois, em dose dupla: tanto com Luís Montenegro, que procura tirar dividendos políticos de um requerimento metido, sem vergonha e ao arrepio da História, no horário de fecho da portaria, como também com Augusto Santos Silva, que rejeita a possibilidade de a proposta de referendo ser votada e chumbada, apoiando-se numa tese duvidosa sobre a inconstitucionalidade formal com base na sua similitude com um projecto anteriormente apresentado, em Junho, pela extrema-direita. As declarações de Hugo Soares, acenando para o conluio do PS com o Chega, são notáveis pela selectividade da memória açoriana, mas será o plenário a decidir sobre a admissão e chumbo da proposta de referendo. E decidirá, também, pelo avanço civilizacional, permitindo que alguém que não consegue viver sem sofrimento intenso possa decidir colocar-lhe um fim, em segurança e sem mais dor.
Não se referenda um sofrimento inatacável porque temos o direito de poder sobreviver a nós mesmos. Amor e dignidade não se entregam aos ditames da fé ou da sua ausência. A demagogia sobre a "liberalização da morte" e a diabolização da eutanásia é uma manobra de dissimulação daqueles que querem impor as suas falsas virtudes às escolhas individuais do outro em liberdade. Ousam até falar da obrigação societária de reflectir e cuidar até ao último sopro de sofrimento, quando sempre menosprezaram o estatuto dos cuidadores informais e o reforço dos cuidados paliativos. Não mais adiamentos. A hipocrisia e a moral em autogestão vão sofrer um rude golpe. Hoje, será um dia histórico para a justiça dos Homens, aquela que a justiça divina não pode substituir.
* Músico e jurista
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 09/12/22.
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