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E agora, Marcelo?
A 12 de agosto de 2014, Joaquim Guedes Figueiredo, militar condecorado com a Cruz de Guerra pela bravura com que combateu na Guiné-Bissau, almoçou com a família, brincou com os netos e meteu-se num táxi até à esquadra de Santa Marta de Corroios, no Seixal. À porta, mesmo em frente à câmara de videovigilância, sacou do revólver que não o abandonava e deu um tiro nas têmporas. Há anos que agonizava com um tumor agressivo e suplicava que lhe encurtassem o sofrimento. Não aguentou mais.
Quem convive todos os dias com a doença e a morte já ouviu de muitos doentes terminais a vontade de abreviar uma existência de dor sem perspetiva de melhores dias. Muitos resignam-se, outros arranjam formas de fintar a lei que obriga a estar vivo quando a existência perdeu todo o sentido. Vão aumentando as doses da medicação até à fatalidade, perecem em acidentes premeditados, ou encomendam na Internet uma droga que é entregue em casa discretamente e adormecem para sempre. Isto, claro, só é possível a quem ainda tenha condições físicas de ensaiar a morte ou beneficie de um cúmplice de misericórdia. O que não podem fazer é pedir ajuda médica para morrer com segurança, conforto e dignidade.
Ao ver a legislação que despenaliza a morte medicamente assistida aprovada, pela terceira vez, no Parlamento, lembrei-me dos muitos que combateram até ao último sopro pelo direito a morrer com dignidade. Como a investigadora Laura Ferreira Alves e o médico João Semedo - levados pelo cancro antes de verem vertida em lei a luta de uma vida. Uma luta que, mesmo depois de mais este importante passo num processo que - lembre-se aos mais distraídos - já leva quase sete anos de avanços e recuos, ainda está longe do fim.
A vida, ou o que resta dela, de muitos portugueses está agora nas mãos do presidente da República, que já vetou a eutanásia duas vezes. Brilhante professor de Direito e católico devoto, Marcelo Rebelo de Sousa estará a escrutinar a letra da lei para encontrar uma fenda que justifique mais um travão nesta causa polarizada na arena partidária.
Enquanto são esgrimidos argumentos legais, éticos e políticos, quem vive num sofrimento incomensurável continua impedido de decidir que já chega. Ou, como pediu Laura, "não morrer aos bocadinhos".
* Jornalista, editora-executiva-adjunta
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" -12/12/22.
1 comentário:
E eu que sou 100% a favor da eutanásia, permito-me perguntar se o PR já terá tido por perto alguém em grande sofrimento sem qualquer hipótese de regredir de doenças incuráveis.
Quem observa de perto casos que nos fazem sentir impotentes, quer a nós, quer à ciência em geral, não podem ficar indiferentes à despenalização de tão importante decisão.
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